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sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Destaques 2024 - Quadrinhos

Finais de ano são encerramentos de ciclos. Momentos para olharmos para trás, agradecermos e celebrarmos destaques e conquistas. Vamos viajar agora por entre minhas melhores leituras de HQs de 2024. O objetivo será exaltar as "leituras" e não os lançamentos, até porque para nos propormos a falar de lançamentos minha demanda de leitura seria enorme frente à tantas excelentes obras que chegaram ao Brasil em 2024. A ordem das obras aqui expostas obedecem minha ordem de leitura.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 01

2024 foi, definitivamente, meu ano de descoberta desta série sobre a qual há muito tempo me chegavam elogios, mas que pela demanda de outras leituras eu postergava conhece-la. Estou falando de Júlia Kendall - Aventuras de uma Criminóloga. Por puro preconceito, eu associava a série à alguma memória de séries para público juvenil, daí meu desinteresse. Para me convencer a dar uma chance foi preciso receber muitas informações e elogios sobre a série, e perceber que seu autor era o mesmo do grande e excepcional Ken Parker. Só lamento ter esperado tanto para ler Júlia Kendall. No Brasil temos uma publicação relativamente farta da personagem e não foi difícil conseguir os números. Fiquei realmente surpreso com a qualidade do material, com as referências e com todo o universo coeso e crível de Júlia. Não dá para separar uma edição específica, por isso meu destaque vai para todas que li esse ano.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 02

Se no número 1 de Júlia, somos apresentados ao universo da personagem de forma sutil, lá também conhecemos aquela que viria a ser sua nêmese, a assassina Myrna. Uma garota que embora venha de um relacionamento difícil com o pai, é uma pessoa sem quaisquer escrúpulos para matar. É no número 2 que vemos se desenvolver uma atração de Myrna pela mente astuta e sagaz de Júlia. O leitor percebe então o qual real, acadêmica e crível é a narrativa de Giancarlo Berardi acerca da mente criminosa dentro das quais a criminóloga mergulha.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 03

É no número 3 que o primeiro arco de confronto entre Júlia e Myrna se conclui. Estratégia, violência e muito suspense demonstram ao leitor o tipo de obra que é Júlia. Berardi se esmerou na construção da personagem, frequentando cursos e lendo muito acerca de criminologia. Como resultado Júlia se constitui em um palco sobre o qual a aparente fragilidade da personagem (inspirada fisicamente na atriz Audrey Hupburn) se contrasta com a maldade, violência e visão doentia de mundo de muitos criminosos.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 04

Os personagens que orbitam a vida da criminóloga, que também é professora na Universidade local na cidade de Garden City, são muito interessantes. E um provável interesse romântico se insinua entre o irascível e cuidadoso Tenente Webb (na capa acima em 2ª plano) na 4ª edição. Longe de ser expressão da masculinidade e beleza Hollywoodianas, Webb ganha o leitor pela personalidade forte e constantes confrontos com Júlia. Outro personagem, o Sargento Irving, é destaque também. Obeso, alto e com um profundo instinto protetor junto à Júlia, Irving é um excelente policial. Sempre pronto para agir frente às situações mais perigosas. Se você não conhece o universo de Júlia, ou sempre postergou a leitura, não perca mais tempo.


A Sergio Bonelli Editore foi a minha grande descoberta desta última década e, como consequência, vários títulos aqui são desta gigante italiana. Morgan Lost é um personagem que: a) pela sua proposta noir; b) seu universo no estilo Art Deco; c) e história de crimes consistentes, invadiu forte minha estante. Solitário, com sutis crises existenciais, atormentado pelos fantasmas dos assassinos que já matou, Morgan Lost vale muito a pena e sai no Brasil pela Editora 85


Jeff Lemire tem deixado sua marca na 9ª Arte já há algum tempo. O Soldador Subaquático, Black Hammer, Gideon Falls entre outros já apontaram para o estilo, sensibilidade e imaginação para o fantástico do autor. Nada a Perder estava na minha pilha há algum tempo e quando o peguei para ler eu não estava com tantas expectativas, considerando que um leitor de longa data sempre sabe que é difícil para um autor manter sua narrativa significativa ao longo de várias obras. Quando lemos Nada a Perder fica claro que Lemire não pretendia mesmo torna-lo um clássico (pelo menos foi minha percepção), uma vez que a obra se re-ssignifica e cresce justamente por trazer apenas a vida de um sujeito comum (nada mais). Mas que dentro de sua vida comum, seus sonhos desfeitos, erros cometidos e relacionamentos destruídos é que a história cresce. A arte meio "quebrada" de Lemire dá assimila muito bem personagens "quebrados" por dentro. Canadense, Lemire sabe trabalhar bem as paisagens geladas, melancólicas e aparentemente sem vida do norte do Canadá onde se passa a história.


Ao lembrar que de Marvel e DC também se vive a vida de um leitor, trago o ótimo Capitão América por Jim Steranko. O encadernado é um recorte de uma determinada fase do Sentinela da Liberdade, mais especificamente Captain America n° 110, 111, 112 e 113, todas de 1969. Uma fase em que seu descongelamento e reinserção à sociedade moderna da década de 60 ainda estava ocorrendo. Com isso, sua angústia pelo passado perdido, saudade de pessoas queridas (principalmente seu parceiro Buck Barnes) ainda o assolava de forma esmagadora. Um leitor desavisado que for ler o encadernado pode ficar com a impressão de que a história sai de um determinado lugar e vai para lugar nenhum. Isso não está totalmente errado porque trata-se apenas do recorte de uma fase, entretanto, este pequeno recorte cresce incrivelmente na arte de Steranko, artista rebelde, que soube inserir, na sua passagem pelos quadrinhos, colagens e inovações marcantes. O resultado é que este encadernado se torna uma pequena pérola representativa da arte do artista.


Desde 2019 (data de seu lançamento), ouço falar sobre Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias de Jefferson Costa. Muitos elogios e críticas positivas... Acontece que quando finalmente decidi ler a obra confesso que não foi fácil lê-la. A obra possui uma narrativa truncada (propositalmente (creio eu)), com o passado se misturando com o futuro sem grandes explicações. Um painel narrativo construído sem compromisso com a linearidade ou entendimento do leitor. Sabemos que há muito significado em cada quadrinho... mas ao mesmo tempo essa significância nos escapa... deixando tudo ao mesmo tempo fluido e profundo (se é que dá para colocar estas duas palavras quase antônimas na mesma frase). O fato é que quando terminei de ler tive uma sensação estranha, sabia que tinha gostado, mas ao mesmo tempo a obra deixa um desconforto. Talvez por representar bem o próprio ônus de se viver. Uma obra que decididamente eu precisaria reler.


A Coleção Epic da Marvel iniciou há não muito tempo nos mesmos moldes da sua proposta nos EUA. Momentos épicos de determinado personagem ou grupo. Neste volume, Liberdade, traz uma fase do Surfista Prateado que sempre quis ler: a fase da sua libertação da barreira de Galactus que o mantinha preso à Terra desde sua rebelião contra o Devorador de Mundos que ocorreu em Fantastic Four Nº 50 de 1966. As inúmeras tentativas de se libertar da barreira sempre foram angustiantes para todos que cresceram lendo o universo Marvel. A liberdade definitiva, entretanto, só ocorreu em Silver Surfer - vol. 01 - Nº 01 de 1987. Embora tenham se passado 21 anos entre 1966 e 1987, a verdade é que no tempo dos quadrinhos Norrin Rad ficou preso à Terra por 15 anos (segundo pesquisas que consegui fazer - se alguém tiver outra informação avise nos comentários). Neste encadernado a fase é predominantemente escrita por Steve Englehart e desenhada por Marshall Rogers. O arco principal do encadernado trabalha não apenas a liberdade do personagem da barreira de Galactus, mas traz também finalmente o desfecho do romance platônico entre Norrin e Shalla-Bal. Vemos importantes mudanças na personalidade do Surfista, que passa de sua tradicional melancolia e tristeza para sentimentos  mais vinculados à decepções e maturidade humana, dentre eles: raiva, ironia, cinismo... Como se finalmente Norrin saísse da adolescência emocional e migrasse agora para as várias matizes das emoções humanas. Nesse contexto, Mantis (a Madona Celestial naquela época) têm importante papel ao conduzir o ex-arauto de Galactus aos labirintos de sentimentos humanos. Como pano de fundo presenciamos ainda uma nova edição da Guerra Kree-Skrull e os planos cósmicos dos Anciões.


Cheyenne foi uma leitura incrível. Uma obra crível e que evitou diversos clichês do gênero Western sem, no entanto, deixar de trazer os elementos que o caracterizam. A Editora 85 vem fazendo um excelente trabalho editorial e de curadoria ao trazer diversos títulos excelentes do Universo Bonelliano, e Cheyenne pode ser adquirido sem medo de errar!


Chantal Montellier é uma autora muito pouco conhecida no Brasil, exceto por alguns lançamentos pela Editora Comix Zone (Social Comics e Odile e os Crocodilos). Bruxas, Minhas Irmãs saiu pela Editora Veneta em 2023 e me chamou atenção por evocar um universo muito caro à todo fã do terror clássico: Bruxas. Obviamente que Montellier tem em mente a concepção de uma obra que ultrapasse as diversas abordagens já dadas à esta entidade "bruxa". A autora na verdade busca criar uma obra que traz à luz os motivos que levam o sexo masculino a exercer, por tantos séculos, um domínio violento e cruel sobre o  feminino. Fascínio, medo e fragilização do ego masculino frente a delicadeza e encanto feminino, são os grandes disparadores das violentas ações de dominação dos homens sobre as mulheres. A rejeição e consequente incapacidade de lidar com ela é outra causa que acende a ira masculina. Assim, Montellier trafega entre passado e presente para trazer exemplos que mostram que este tipo de reação ainda está estruturada e muito presente no universo masculino. A leitura é angustiante e reveladora, e a arte é taciturna, triste e melancólica. Combinando perfeitamente com o texto da autora. Um lançamento de 2023 no Brasil que foi muito (ou nada) comentado dentro da gibisfera. Infelizmente!

Esses foram minhas leituras de destaque amigos. E as suas? O que você leu em 2024 no mundo quadrinístico e gostaria de destacar?

sábado, 30 de dezembro de 2023

Destaques 2023 - Quadrinhos


Numa espiral positiva de lançamentos, os últimos anos têm sido recheados de grandes edições. Sobretudo no âmbito das pequenas editoras que, por meio de financiamento coletivo e concebidas de fã para fã, tais edições têm capturado centenas de leitores que há muito gostariam de ver determinadas obras no Brasil. Este recorte abaixo diz respeito ao que eu li em 2023, e não necessariamente ao que foi lançado em 2023. Preparem-se para viagem!


Galo de Briga é uma obra que quero comentar positivamente, entretanto já me lamentando pelo fato da Faro Editorial (Selo Poseidon) não ter ainda confirmado a continuidade da Saga no Brasil. Trata-se de um recorte muito preciso da década de 30, onde a inocência do pré II Guerra Mundial começava a ceder lugar à uma sombria realidade. Assim é também a história, que trata do ocaso de um grande herói, o Galo de Briga, que ao lado de outros heróis que o acompanhavam, começa a ver seu mundo "mais inocente" ruir. Com personagens cativantes, uma estética Art Deco, e um excelente retrato do "espírito do tempo" do pré-guerra, Galo de Briga cativou de primeira. Nos resta torcer para que a editora traga os demais volumes.

Coney Island foi um dos primeiros lançamentos do selo LoroBuono da Editora 85. Uma editora com um excelente trabalho de curadoria dentro do universo Bonelli. Nesse caso, mais um incrível trabalho de ninguém menos que Gianfranco Manfredi (Face Oculta, Adam Wild). Aqui novamente os anos 30 em foco, mais especificamente a atmosfera de alegria e estranhezas de um dos parques mais tradicionais de Nova York, o Coney Island parque, localizado na península de mesmo nome no distrito do Brooklyn. Um lugar palco de uma enormidade de experiências emocionais e destino de uma avalanche de pessoas em busca de escapismo e oportunidades. A obra gira em torno de i) um detetive particular, ii) uma trupe de artistas liderada por um homem verdadeiramente mediúnico, iii) um ex-herói de guerra e ninguém menos que iv) Al Capone. Com um eixo central e várias subtramas, Manfredi amarra todas as pontas soltas com maestria com seu costumeiro apuro historiográfico. Assim, o autor constrói todo um pano de fundo que garante um experiência imersiva ao leitor. Um grande gol  da Editora 85! 

Gus foi um lançamento de alguns anos atrás da Editora Sesi. Dividido em 4 volumes, trata-se de uma criativa e subversiva abordagem do velho oeste americano. O protagonista Gus faz parte de um trio de foras-da-lei, entretanto, o autor, Christophe Blain, subverte o gênero ao mostrar o costumeiro e hermético universo masculino dos filmes de Bang-Bang a partir de fragilidades afetivas que todo homem possui, ainda que disfarçadas por estereótipos brucutus. A proposta é um comédia de afetos não correspondidos e aventuras amorosas truncadas, recheadas de tiroteios, assaltos e brigas de saloon. O resultado é divertido e, para mim, foi um exercício de desconstrução muito interessante do gênero. Como é um lançamento de alguns anos, recomendo àqueles que forem garimpar HQs ou, quem sabe, solicitar a republicação por alguma editora.


O Procurador é outra publicação com a assinatura de Gianfranco Manfredi a receber destaque entre minhas leituras deste ano. Lançada com o primor e cuidados tradicionais da Editora Pipoca e Nanquim, a obra é um recorte da segunda metade do século 19 nos EUA, a época tradicional dos filmes de Faroeste. Entretanto, o protagonista aqui é outro, ou seja, o exímio atirador e o centro da trama não é o pistoleiro fora-da-lei, pelo contrário, na verdade é o aparente "almofadinha" empregado das tradicionais empresas da época. A história é leve, e não tão profunda em seus nuances históricos como em outros trabalhos de Manfredi. Mas é envolvente, violenta, com pontos precisos de humor e fidedignidade ao seu tempo. Ótima leitura. Excelente HQ.


Hellnoir é outro destaque Bonelliano de 2023. Um Noir diferente, ao mesmo tempo que possui todos os elementos característicos do gênero. A diferença é que se passa no pós vida, em uma cidade (Hellnoir) que, em tudo, se parece com um purgatório. Há castas vampíricas e demoníacas de seres espirituais, policiais demoníacos corruptos e, em meio a tudo isso, almas que chegam desorientadas e são presas fáceis para todo tipo de criminosos. O protagonista é o detetive Melvin Soul que consegue manter uma estranha relação com sua filha ainda viva e ainda possui um tênue senso de justiça. Uma interessante sacada é que coisas que temos em nosso mundo e que representam conceitos espirituais, tais como, velas, incenso, água benta, são itens extremamente perigosos para todos os seres espirituais de Hellnoir, e por isso quase inexistentes naquela realidade. Uma história de terror-noir ao melhor estilo Bonelli.


Impossível descrever o que o autor Marc-Antoine Mathieu faz na história de Julius Corentin Acquefacques, protagonista de O Prisioneiro dos Sonhos. História dividida em 3 volumes atualmente publicados pela Editora Comix Zone no Brasil. Mistura de epopeia Kafkiana com elementos profundamente oníricos e simbológicos. Mathieu usa de metalinguística, quebra da 4ª parede, estruturas gráficas e até mesmo da concretude do papel no qual está impresso a história para completa-la. O resultado é uma obra modelável, fluida e que brinca com o senso de realidade do leitor. Por algum motivo que me escapa, acabei iniciando a leitura pelo volume 2 (O Processo), e não pelo volume 1 (A Origem). Mas pelo que pude depreender, a narrativa da história é tão surreal, que não há perda em fazer esta inversão. O último volume (O Começo do Fim) já foi lançado em 2023 no Brasil. Uma obra que precisa ser analisada em suas camadas de significados, e debatida em círculos de leitores. Uma experiência transcendente com um caráter circular e sutilmente opressiva. Excelente!


Vampiros da Meia-Noite foi um lançamento e uma das minhas mais agradáveis leituras do ano. A obra, lançada pela Editora Skript em parceria com a Quadriculando, é um quadrinho que reconstrói o roteiro do filme perdido London After Midnight de 1927 (Vampiros da Meia-Noite no Brasil). O filme foi perdido em um incêndio em 1967, que destruiu parte dos estúdios da MGM, e se tornou um Santo Graal para cinéfilos e estudiosos em todo mundo. London After Midnight trazia o ator das mil faces Lon Channey e o diretor Tod Browning (Drácula (1931) e Freaks (1932)), e ao que tudo indica era realmente uma obra de arte, uma vez que a adaptação para a HQ, feita por Enrique Alcatena (ilustrador) e Gonzalo Oyanedel (jornalista), descortina um roteiro criativo e original. Um roteiro, aliás, baseado no conto "The Hypnotist" do próprio diretor Tod Browning. Ao ler a obra, o leitor experimenta uma estranha sensação metalinguística, pois analisando-se retroativamente temos uma HQ baseada num filme (que foi perdido) e que, por sua vez vinha de um roteiro baseado em um conto. Além desta sensação, percebemos se tratar de algo raro, perdido, longínquo, e que tenta nos alcançar após quase 100 anos. Fascinante!!


A Trilogia Gatilho em edição completa da Editora Pipoca e Nanquim, é um faroeste na melhor concepção do gênero. Desenhada por Pedro Mauro (brasileiro que vem recebendo justo e merecido reconhecimento), a obra propicia um mergulho no velho e bom bang-bang, ao mesmo tempo que traz a sutil lembrança de obras setentistas, época em que Mauro já estava em atividade. Uma excelente leitura do ano!

Falar bem de Ken Parker é realmente uma redundância! O personagem vem sendo publicado em ordem cronológica em edições capa-dura dignas de colecionadores pela Editora Mythos. Felizmente temos a promessa de publicação de toda a saga pela editora, algo que foi feito apenas uma vez no Brasil pela Editora Cluq, entretanto de forma muito lenta e com tiragens baixíssimas. Muitos leitores falavam, em seus comentários nas redes, o quão bom era esse personagem criado por Giancarlo Berardi e ilustrado por Ivo Milazzo, baseado nisso eu tinha muita expectativa e, por isso mesmo, medo de me frustrar. Mas esse, definitivamente, não foi o caso de Ken Parker, um Western situado na primeira metade do século 19, antes da Guerra Civil norte americana. Neste número 4 temos o fechamento do primeiro grande arco do personagem. Muita ação, significado histórico e lealdade à época. Maravilhoso!

Em geral, tudo que sai do Motoqueiro Fantasma me interessa. Acho o conceito do personagem muito forte, principalmente pela ideia de representar um conceito. Quando tentaram explicar quem ele era a partir de uma perspectiva celestial/bíblica, achei que houve uma certa perda de sua estrutura dramática. Prefiro pensar nele como a encanação de um conceito, tal qual personagens como Sandman e Monstro do Pântano, ambos da DC. Trilha das Lágrimas é uma boa história. Trata-se de um voo criativo de Garth Ennis com objetivo de dar sentido diferente ao Cavaleiro Fantasma original da Marvel (teoricamente um primeiro hospedeiro para o Espírito da Vingança). A arte de Clayton Crain impressiona muito. No encaminhamento final da história tive e impressão de Ennis se perder um pouco na condução da trama, mesmo assim foi um destaque.


Depois de muito relutar em conhecer o universo de Júlia de Giancarlo Berardi (sim, o mesmo de Ken Parker) cedi aos diversos comentários favoráveis de pessoas que respeito. Não poderia ter ficado mais satisfeito. Meu aparente desinteresse pela publicação por se tratar de um formato menor, preto e branco e com uma personagem com características delicadas e frágeis desaparece completamente à medida em que Berardi nos apresenta a brutal realidade por trás das mentes criminosas. Júlia Kendall, traz o contraste perfeito entre uma aparência frágil (inspirada na atriz Audrey Hepburn) e sua vontade de entender o modus operandi da "mente criminosa" e o universo dentro do qual tais mentes operam. Berardi fez uma viagem acadêmica profunda no universo da criminologia, estudando formalmente em ambientes acadêmicos. O que lemos pela boca da Profa. Júlia (ela também uma acadêmica) são informações concretas e reais acerca da área da criminologia. Minha estreia como leitor foi, por um acaso, em uma série que traz Júlia em sua época de estudante, trata-se portanto de um prelúdio à vida adulta da personagem. Recomendo muito mesmo à todo leitor inteligente e em busca de um universo adulto, crível e cheio de mistério e reviravoltas.


Outro universo que relutei muito em entrar foi o dos quadrinhos "mudos" (sem falas). Porém, acabei dando uma chance ao suíço natural de Zurique, Thomas Ott, que com sua robusta arte baseada em hachuras conseguiu capturar-me completamente. Ler, ou melhor, acompanhar a trama de A Floresta foi uma epifania. Senti a obra me tocar numa profundidade que há muito não experimentava. Em 2023 sentei-me numa poltrona em casa, coloquei ao fundo Chopin e abri A Floresta. Como se tivesse seguido os passos corretos para um ritual secreto, minha mente literalmente explodiu. Uma sequência de imagens que gritavam para escapar das páginas para entrar em nosso in/consciente profundo. Se você já vivenciou uma perda na família, ou possui esse sentimento de ausência dentro de si, a obra é para você, pois trata disso. Depois de A Floresta estou determinado a comprar todas as obras de Ott, que recentemente teve mais uma lançada no Brasil pela DarkSide Books, O Número 73304-23-4153-6-96-8.


O longa HQ Crime e Poesia foi um achado! Um achado que muitos deveriam encontrar. A triste, reveladora e transcendente história de Matt Rizzo, um sobrevivente dos violentos bairros ítalo-americanos dos anos 1930 que, após uma malfadada experiência criminosa perde a visão. Rizzo amargaria anos e anos na prisão onde, em um ambiente hostil e completamente na escuridão, encontraria a luz a partir de Dante Alighieri. Uma história real que possui como pano de fundo uma outra história criminosa real, porém mais hedionda, que foi o crime de Leopold & Loeb em 1924. A história é narrada pelo filho de Matt, Charlie Rizzo que, por sua vez, a contou ao autor de Crime e PoesiaDavid L. Carlson. Assim, como Maus, a história de Matt Rizzo não poderia ser contada por nenhuma outra mídia a não ser mesmo os quadrinhos. A arte visceral de Landis Blair combina com o ambiente violento e ao mesmo tempo transcendente dentro do qual Matt Rizzo viveu. Uma obra maravilhosa que pode trazer aquilo que você está procurando em sua vida.


Última obra do gigante Will Eisner, O Complô - A História Secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião, trazem um trabalho denso, muito diferente de outros do autor. Eisner reconstrói a origem dos mentirosos Protocolos do título. Um conjunto de escritos que foram, e ainda o são, usados para fomentar o antissemitismo. Um documento que deu base para diversos expurgos de judeus pelo mundo. Com raízes num livro (O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu) publicado na França em 1850 pelo ativista político Maurice Joly, Os Protocolos dos Sábios do Sião tiveram sua construção a partir da Rússia czarista e atingiu centenas de nações. Em O Complô, Eisner consegue de forma genial reconstruir a história deste odioso documento e lança luz nas sementes de ódio sempre prontas para eclodirem, bastando um documento, sendo ele falso ou não.


Não me canso de me surpreender com a Coleção Tex Gold da Editora Salvat. Aliás, a surpresa é maior com Tex, o ranger Bonelliano que infelizmente demorei demais para conhecer. Em O Vale do Terror (La Valle del Terrrore), edição Nº 26 da coleção, Cláudio Nizzi mostra que é realmente um dos grandes roteirista do personagem. A história é o último trabalho do desenhista, também italiano, Roberto Raviola (conhecido como Magnus). Envolvente e graficamente belo, a obra coloca Tex e seu parceiro Kit Carson em um microcosmo familiar cheio de drama e mágoas. Ótima leitura e com certeza destaque.


O ano se fecha novamente com ele, Gianfranco Manfredi, com seu personagem Adam Wild, mistura de explorador e libertador. Um personagem solidamente construído a partir de figuras reais, como o explorador David Livingstone, primeiro europeu a percorrer toda a África Negra. Com uma construção histórica sólida e fiel à realidade vivida pelas tribos africanas assoladas pelos caçadores e mercadores de escravos na segunda metade do século 19, Adam Wild é fascinante. É impossível não relacionar a obra à outra a pérola da literatura universal que é O Coração das Trevas, do polonês Joseph Conrad. Fruto das experiências vividas por Conrad no coração da selva africana, O Coração das Trevas é um atestado da crueldade, violência e loucura humanas, tendo sido adaptado por Francis Ford Coppola em 1979 em seu Apocalypse Now. Adam Wild é um exemplo de literatura Pulp da melhor qualidade com fortes raízes na realidade histórica. 

Estes foram meus destaques dentre minhas leituras de quadrinhos em 2023. Quais foram as suas? Se quiser deixe nos comentários!

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Joe Golem - Detetive do Oculto (Melhor de 2021)!


Às vezes somos lembrados do motivo que nos fazem tão fãs de quadrinhos. Em meio à tantos lançamentos, uma simples HQ pode parecer irrelevante diante de tantas opções. Joe Golem me chamou atenção já pela capa ao evocar quase que em 100% o espírito dos antigos PULPs. Mesmo assim estava receoso de comprar porque conheço pouca coisa do Mike Mignola, apesar de sua grande fama com Hellboy. Mas na segunda ou terceira página a obra já tinha me fisgado completamente. A história até tem clichês das tradicionais histórias de sobrenatural, mas o que impacta é 1) a forma como é contada, 2) a ambientação e 3) a arte. Mignola criou um universo fantástico no qual Nova Iorque foi engolida pelo mar em função de um cataclismo no início do século 20. Boa parte da cidade e da ilha de Manhattan ficaram submersos, passando a lembrar muito Veneza, só que com toda a decadência usual das obras "Noir". O nome do personagem já parece dar pistas de sua origem e, em paralelo à trama (ambientada na década de 60), é contado uma outra história que se passa na Eslovênia do Século 15. 

Capa de Dave Palumbo para Joe Golem - O Apanhador de Ratos Parte 1

As capas são do artista Dave Palumbo e conseguem resgatar todo vigor dos Pulps. A arte interna é de Christipher Golden e olha... É incrível! Golden possui um traço muito parecido com o de outro artista, o búlgaro Alex Maleev. O diferencial são as expressões e posições dadas aos personagens. Você é completamente imerso nas expressões faciais, sensações de movimento e "trejeitos" dos personagens. Mas outro diferencial é a paleta de cores desbotadas usadas pelo colorista Dave Stewart. Esse desbotamento auxilia em muito o clima onírico, mágico e alavanca a representação decadente dos cenários.

Capa de Dave Palumbo para Joe Golem - O Apanhador de Ratos Parte 2

A edição da Editora Mythos é em capa cartonada e traz duas histórias: O Apanhador de Ratos e Os Mortos Submersos. Para mim Joe Golem já figura entre as melhores HQs de 2021, se não a melhor. Parte deste meu entusiasmo é explicado pelas questões apresentadas acima, mas não posso deixar de dizer que o gênero é também meu preferido. Mas mesmo que o sobrenatural não seja sua primeira escolha nas livrarias e bancas, eu recomendaria fortemente você conhecer a obra. São poucas as HQs que conseguem sincronizar tão bem, ambientação, história, arte, diálogos, profundidade de personagens e temática interessante.

Capa de Dave Palumbo para Joe Golem - O Apanhador de Ratos Parte 3

Capa de Dave Palumbo para Joe Golem - Os Mortos Submersos Parte 1

Capa de Dave Palumbo para Joe Golem - O Apanhador de Ratos Parte 2

Sem dúvida nenhuma uma HQ que precisa ser conhecida e a Mythos precisa dar continuidade à sua publicação no Brasil! Abcs. à todos!

domingo, 25 de abril de 2021

O Chamado de Cthulhu de H.P. Lovecraft - Ilustrado por Salvador Sanz

Eu conhecia o legado de H.P. Lovecraft para a literatura mundial já há muitos anos, especificamente para o subgênero Horror Cósmico. Mas somente ano passado pude entender perfeitamente como a hipnótica escrita de Lovecraft consegue nos levar para dimensões ancestrais de forma tão profunda. Este entendimento me chegou ao ler o Conto O TEMPLO presente na Antologia Das Estrelas ao Oceano da Editora Martin Claret e o livro Nas Montanhas de Loucura da Editora Hedra. Por isso não foi difícil logo migrar para aquele que é talvez seu conto mais emblemático, O Chamado de Cthulhu. Tive o prazer de lê-lo a partir desta primorosa edição da Editora Skript. Uma edição com vários atrativos que realmente a diferenciam e contribuem em muito para o aprofundamento da leitura. O primeiro deles é a presença do ilustrador argentino Salvador Sanz que, ao longo da edição produziu algumas ilustrações-chave para a obra. Ilustrações estas que conseguem dimensionar e apresentar magnanimamente as palavras e descrições fantásticas de Lovecraft. A arte de Sanz é obscura, épica, arqueológica, bíblica (!)... Adjetivos como esses explicam o poder que tais imagens produzem no leitor durante sua imersão na obra.













Outro ponto importante da edição é o "papel de impressão" usado. Robustas e de boa gramatura cada página possui uma moldura imitando folhas de cadernos antigos, além de uma peculiar imagem que se repete ao longo de todo o livro na extremidade lateral. Todo esse fabuloso projeto gráfico tem o mérito de Jhonny C. Vargas. Faço questão de citar seu nome porque há muitas edições em que os acessórios gráficos pouco servem para sustentar a narrativa, apenas embelezando o livro, mas ainda sim sem fornecer apoio para a experiência de leitura. O que não é o caso aqui, já que cada detalhe ajuda, sustenta e expande a narrativa. Por fim os outros dois grandes destaques são o prefácio de Nathalia Sorgon Scotuzzi (Mestra e doutoranda na obra de H.P. Lovecraft e editora da Diário Macabro) e o posfácio de Thiago de Barros Carneiro da página AfroNerd. No prefácio Nathalia faz um detalhado, porém sucinto e objetivo apanhado acerca da incrível contribuição de H.P. Lovecraft para a literatura mundial, além de contextualizar O Chamado de Cthulhu dentro de suas outras obras. O posfácio porém, guarda um tema que já havia despertado minha curiosidade, Lovecraft e Racismo. Eu já havia ouvido falar acerca do racismo do autor, algo entranhado em sua escrita. Mas Thiago consegue escrever sobre o tema equilibrando dois ponto difíceis de se conciliar: 1º) Não varrer o autor para o esquecimento em função de suas posições racistas e 2) ao mesmo não retirar-lhe o peso negativo e responsabilidade por suas crenças.















Não posso deixar de mencionar o pequeno mas muito elucidativo glossário que aparece ao final da obra, o que ajuda o leitor a entender a extensão da mitologia lovecraftiana. Sobre a história não posso entregar muito, a não ser que se trata de uma narrativa que vai num crescendo aproximando o leitor de um mito hediondo, ancestral, adormecido em uma cidadela submersa no oceano pacífico. Um pesadelo que dorme aguardando um colossal ciclo estelar se concluir a partir do alinhamento de diversas constelações, permitindo a liberação de seres primordiais malignos. O que embasa tal premissa é toda uma investigação conduzida por um antropólogo que reluta em crer na existência de um culto presente em diversas partes do mundo. Um culto sutil, marginal e horrível, mas que sustenta e prepara o retorno deste mal personificado pelo ser chamado simplesmente de Cthulhu, um nome impronunciável da forma correta pelos seres humanos, por não dispormos dos elementos fonéticos adequados para pronuncia-lo. Embora preso e submerso em sua cidadela adormecida no Pacífico Sul (coordenadas 47 9´ S, 126 43´´ W) chamada de R´lyeh, Cthulhu estaria acordado e capaz de influenciar sonhos de pessoas sensitivas ao redor da Terra, além de dar sustentação psíquica para a manutenção de seu culto em diversas comunidades ao redor do planeta.















Apesar de ser derivado de éons ancestrais, o leitor presenciará nas páginas do livro um encontro entre uma tripulação e o próprio Cthulhu, o que permitirá a revelação das suas características físicas específicas. O leitor terminará o livro com a amedrontadora curiosidade de conhecer mais o universo elaborado por Lovecraft. Não apenas pelo seu caráter mítico e fantástico que sempre nos aguça, mas também em função da construção crível de todo um universo mitológico. Embora este conto seja encontrado dentro de muitas coletâneas, eu recomendaria fortemente sua leitura nesta edição específica da Editora Skript. À semelhança desta edição de O Chamado de Cthulhu, outro conto de Lovecraft foi editado neste mesmo formato com ilustrações de Salvador Sanz, O Habitante das Trevas. Uma edição que também foi financiada pela Plataforma de Financiamento Coletivo Catarse.















A Editora Skript tem crescido e se desenvolvido dentro de uma proposta mais voltada para o terror, espero em breve comentar aqui sobre outro lançamento, o livro O Melhor do Terror dos Anos 80. Um livro-resenhas que traz 80 filmes de terror lançados na década de 80 comentados por estudiosos.

Grande abraço à todos.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Viagem Literária - 2020


O que você leu em 2020? Por quais lugares sua mente divagou? A minha, em particular, fez voos por lugares muito diferentes e distantes. Mas em  todos os casos muito interessantes, às vezes estranhos e fantásticos, mas sempre positivos ao me auxiliar na difícil tarefa de enfrentar o contexto pandêmico. Viajei inicialmente à um mundo alternativo criado pela filósofa Ayn Rand em que ela ilustra seu curioso ponto de vista político e econômico no livro A Revolta de Atlas - Vol. 01. Estimulado pela forma de pensar do roteirista Alan Moore, li o seminal livro do Biólogo inglês Rupert Sheldrake intitulado A Ressonância Mórfica e a Presença do Passado - Os Hábitos da Natureza onde é apresentada sua elegante forma de explicar a vida e o que estaria por trás dos (ainda) inexplicados comandos para que nasçamos e cresçamos. Depois disso tive a vontade de me deixar envolver pelo estranho caso que sucedeu à Família Harper, na Rua Wood Lane Nº 84, Subúrbio de Enfield em Londres em 1977. Um relato incrível de um dos Poltergeists mais documentados da história apresentado no livro 1977 - Relatos Sobrenaturais - O Caso Enfield. Em seguida submergi na visão de quatro célebres e clássicos escritores da ficção científica na ótima antologia Das Estrelas ao Oceano. Talvez subconscientemente impulsionado pela pandemia pelo novo Coronavírus resolvi então retirar da estante um livro sobre os riscos biológicos de uma ameaça planetária no romance O Enigma de Andrômeda. Depois de muito postergar, resolvi ceder ao mundo ficcional de H.P. Lovecraft ao ler Nas Montanhas da Loucura, um relato ficcional com aspectos fantásticos e profundamente existências. No apagar das luzes de 2020 tirei da estante a biografia de uma das mentes mais inquietas, obscuras e fantásticas até hoje, o já mencionado Alan Morre, na biografia O Mago das Histórias


Manifesto de direita ou crítica legítima ao socialismo? A Revolta de Atlas traz a perspectiva da filósofa Russa radicada nos EUA Ayn Rand acerca da política social que deveria ser aplicada em sua opinião, a saber, o individualismo e a razão como únicos meios de adquirir conhecimento. Em seu conjunto de valores Rand rejeitou a fé, a religião e o altruísmo, apoiando o egoísmo racional e ético. Embora, eu não concorde com a aplicação ipsis litteris destes conceitos, eu sempre quis conhecer as ideias de Rand. Em A Revolta da Atlas a escritora constrói uma história envolvendo a personagem principal Dagny Taggart. Taggart é a herdeira de um império que parece ruir aos poucos à mercê de uma política em que tudo deve ser compartilhado em prol do bem comum. Leis e políticas de Estado são implementadas para garantir o desmantelamento da propriedade privada nos EUA. No entanto, uma apatia quase sobrenatural parece tomar conta de tudo e de todos, fazendo com que tudo que vai sendo compartilhado acabe se esfacelando pela falta de empreendedorismo e apatia das pessoas. Há princípios que vão sendo claramente apresentados ao longo da trama, um deles é de que a falta de estímulo mina a vontade humana de crescer. Apesar de polêmica, Rand possui uma verdadeira legião de fãs, incluindo o roteirista Steve Ditko (falecido em 2018), co-criador do Homem-Aranha ao lado de Stan Lee. Ditko chegou a criar personagens baseados no Objetivismo de Rand, como por exemplo o personagem Questão. Neste primeiro volume da série Rand, deixa várias coisas em suspenso, mas abre claramente o caminho para suas ideias.

Quando li A Saga do Monstro do Pântano do escritor Alan Moore, fiquei surpreso com tamanha genialidade ao refazer um personagem à luz da ideia de um "Campo de Ressonância" que permeia as criaturas vivas, e de onde muito do que somos provêm. O próprio Moore, no entanto, atribui estas ideias à Rupert Sheldrake, biólogo inglês que criou uma teoria muito elegante acerca dos comandos naturais aos quais estamos sujeitos. No livro A Ressonância Mórfica e a Presença do Passado - Os Hábitos da Natureza suas ideias são fundamentadas e apresentadas. Sheldrake em linhas gerais explica que as experiências vividas por uma espécie acaba por criar um campo de ressonância, o campo morfogenético. O autor ilustra que tijolos, cimento e madeira são ingredientes para se construir uma casa. Mas em separado de nada servem. É preciso de um plano de construção e sobretudo de comandos para a construção da casa. Nossa herança genética são o cimento, madeira e tijolos, mas tal herança não explica de onde vem os comandos necessários para que todas as proteínas se combinem de maneira ordenada para construção de um ser vivo. Isso não está nos genes. O livro é excepcional e traz uma concepção interessante acerca da vida, sem perder de vista a experimentação e fundamentação científica. Pena que esse livro é de uma Coleção Portuguesa (Coleção Crença e Razão). Mas consegui achar facilmente em uma livraria.


Às vezes a ficção invade nossa realidade e se impõe como fato. O livro 1977 - Relatos Sobrenaturais - O Caso Enfield do jornalista e testemunha ocular Guy Lyon Playfair, traz o que parece ser algo inconcebível para muitos, a interferência (acima de quaisquer suspeitas) de um ou vários Poltergeists que assolaram uma família (os Harpers) ao longo da 2ª metade de 1977. O caso foi extensamente documentado por Playfair e pelo colega Engenheiro e Pesquisador Maurice Grosse. O resultado dessa incrível experiência está neste livro publicado em primorosa edição pela Darkside Books aqui no Brasil. Playfair consegue realizar um relato humano e crível que não cai na armadilha de se tentar "florear" o ocorrido. Sua escrita é objetiva e cheia de compaixão pelo que a família Harper sofreu. Em seus vários pedidos de ajuda à outros profissionais ligados ao paranormal, tudo que Playfair conseguiu na época foi relatórios estapafúrdios de pesquisadores que atribuíam tudo à cabeça das meninas da família, na época pré-adolescentes. Ao não conseguirem explicar o que ali acontecia, toda culpa recaía sobre a família, taxados de embusteiros querendo chamar a atenção. Playfair e Grosse foram os únicos que acompanharam o lar dos Harpers até o fim e amenizaram o sofrimento da família. Um livro muito interessante e que não tenta dar nenhuma resposta cabal ao sobrenatural.


Na antologia de ficção científica Das Estrelas ao Oceano a editora Martin Claret traz cinco contos de quatro grandes autores clássicos: H.G. Wells, Julio Verne, H.P. LovecraftJ.H. Rosny Aîné. Publicados quando o mundo era totalmente diferente do nosso, os contos mantém o cerne de mistério que envolve, a seu modo, cada um deles. Além do óbvio exercício histórico que é lê-los, o leitor (ao abrir sua mente) consegue facilmente experimentar a estranheza e mistério proposto em cada narrativa. A proposta gráfica do livro em muito lembra os antigos lançamentos do hoje lendário e saudoso Círculo do Livro. A seguir seguem os nomes dos contos: de H.G. Wells, A ESTRELA, acerca da angústia em massa frente à destruição planetária iminente e ARMAGEDDON: O SONHO, um interessantíssimo relato sobre a matéria de nossos sonhos (!!); de Julio Verne, O ETERNO ADÃO, uma história envolvente acerca da nossa pequenez frente às modificações de nosso planeta; de H.P. Lovecraft o aterrador O TEMPLO, que traz o que há de melhor na narrativa do escritor, sua capacidade de expressar de forma surpreendente nosso passado; e de J.H. Rosny Aîné o UM OUTRO MUNDO antecipa, em minha opinião, o que hoje acredita-se como verdadeiro, a saber,  existência de mundos paralelos.

Possivelmente influenciado pela pandemia pelo Novo Coronavírus, retirei da estante o livro O Enigma de Andrômeda do conhecido Michael Crichton, escritor muito adaptado para o cinema. O livro, publicado ainda nos anos 60 traz o relato extremamente crível de como seria uma ameaça biológica ao Planeta Terra. Diferentemente da COVID-19, o vírus do livro, chamado de Variedade Andrômeda veio do espaço trazido por uma sonda/satélite sub-orbital. Absurdamente letal, o vírus extermina de pronto uma cidadezinha americana em apenas alguns minutos, já que era transmitido pelo ar. Narrado em tempo real, a história mostra os planos de contingência norte-americanos para esse tipo de ameaça. Aliás, eu propriamente nunca tinha pensado na perigosa possibilidade de algum artefato feito pelo homem (Ex. um ônibus espacial) que após um voo orbital acabasse trazendo algo letal para nossa espécie vindo do espaço. A obra foi adaptada para o cinema em um filme de mesmo nome de 1971. Embora o final seja um tanto quanto mal desenhado, o livro é muito interessante e vale sim a leitura pelo suspense muito bem construído e pelas incríveis informações que Crichton oferece acerca dos protocolos de segurança norte-americanos. Alguns deles, inclusive, nada éticos, humanitários ou morais.


Influenciado pela leitura do conto O TEMPLO de H.P. Lovecraft (1890-1937), presente na Antologia Das Estrelas ao Oceano (mencionada acima), tirei da estante o livro Nas Montanhas da Loucura. O autor influenciou absurdamente toda literatura fantástica que foi produzida no século XX e ainda reverbera mais do que nunca hoje. Ao ler Nas Montanhas da Loucura é possível entender um pouco o "porque". Lovecraft entendia a literatura fantástica como um dos únicos veículos capazes de transmitir as insondáveis memórias ancestrais de nossa espécie e iluminar o passado longínquo de nosso Planeta. A excelente introdução do livro, feita por Guilherme da Silva Braga, Organizador e Tradutor do livro contextualiza muito bem a obra dentro das ideias de Lovecraft. Inclusive os meandros da escrita do livro. A história apresenta uma expedição feita aos longínquos territórios gelados do círculo polar antártico, onde os desavisados exploradores se deparam com as ruínas de uma monumental cidade possivelmente datada de milhares de anos atrás, antes até dos Dinossauros. A narrativa mantem seu frescor, sobretudo em função das inúmeras e excepcionais maneiras de Lovecraft traduzir em palavras sentimentos obscuros guardados dentro de nós e que afloram quando estamos diante do insondável, do inimaginável, ou de paisagens que evocam em nós um sentimento ancestral. Não há como não se dobrar à isso!! Tanto que preciso transcrever aqui as palavras da escritora norte-americana Joyce Carol Oates que escreve o seguinte na quarta-capa desta edição da Editora Hedra:

"Existe uma grandeza melancólica e operística em Nas Montanhas da Loucura; uma curiosa poesia elegíaca de perda inefável, de desespero adolescente, e uma solidão existencial tão profunda que permanece na memória do leitor, como um sonho, por muito tempo depois que os rudimentos do enredo lovecraftiano se apagam" - Joyce Carol Oates. 

Alan Moore é um dos mais importantes, e talvez obscuros artistas, dos últimos 40 anos. Capaz de trafegar entre escrita, música, teatro entre outras expressões de arte, Moore é uma figura enigmática, brilhante, misteriosa em função de suas crenças, ética e honesta. Diante de suas incríveis obras para a 9ª Arte tais como A Saga do Monstro do Pântano, Watchmen, V de Vingança, Miracleman, Do Inferno (apenas para citar algumas), como não ficar curioso em conhecer mais de perto sua mente? Graficamente magnífico e com uma escrita apaixonada, o livro Alan Moore - O Mago das Histórias de Gary Spencer Millidge, faz jus à profundidade dos trabalhos do artista, além de descrever com incríveis imagens e diversas passagens sua vida pessoal e profissional. A edição da Editora Mythos é portentosa, com seus quase 30 cm de comprimento e 22 cm de largura. Impressão em papel de alta gramatura com excelente reprodução de capas, fotos e imagens. Mas mais do que toda esta estrutura gráfica, o conteúdo do livro é profundo e consegue transmitir como o autor pensa e no que acredita. A obra cobre praticamente tudo que ele produziu e não esconde características difíceis para nós entendermos, como por exemplo as crenças de Moore, que a partir de 1993 decidiu se tornar mago. Para todo amante dos quadrinhos, literatura e arte Alan Moore - O Mago das Histórias nos desafia a expandir nossa compreensão do que nos cerca. Sem dúvida nenhuma o livro será alvo de uma matéria completa aqui no Blog.

E você? Qual foi sua viagem literária feita em 2020? Quais lugares, mundos ou realidades você visitou? Conte aqui e, aproveitando... FELIZ 2021

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Destaques 2020 - Quadrinhos


Com o fim de 2020 se aproximando está na hora de mencionar as HQs que foram destaques entre minhas leituras nesses últimos 12 meses. A seleção se refere ao que li ao longo do ano, e não necessariamente às obras lançadas nesse período. Marcado como um ano de profundo impacto na vida de todos em função do novo coronavírus, as HQs mais que nunca funcionaram como escapismo à dura realidade pandêmica de confinamento e desgaste físico e emocional. Situações assim nos mostram como o bem estar pessoal se relaciona com a saúde mental, emocional e social, e a 9ª Arte mais que nunca forneceu momentos de repouso psíquico para mim. A matéria apresentará as HQs dentro de minha ordem cronológica de leitura.


O Desafiador (Boston Brand) é um dos personagens mais interessantes do Universo Místico da DC, no entanto, pouco já foi publicado no Brasil acerca de sua origem e motivações. Este encadernado levanta muito do manto de mistério sobre sua origem, sua relação com seu irmão, com a entidade Rama Kushna e com a cidade mística de Nanda Parbat. Publicada originalmente em formato de minissérie em 1986, Desafiador - Retorno à Eternidade é continuação direta da história Ninguém Escapa do Desafiador! que saiu em The  Brave And The Bold  n° 86 de 1969 (publicada aqui no Brasil há não muito tempo em Lendas do Cavaleiro das Trevas - Neal Adams volume 2), ou seja, uma história que demorou 17 anos para ser continuada. O encadernado é uma obra importante para a mitologia do personagem. Vale ressaltar que, infelizmente, a abordagem até um pouco engraçada dada à Boston Brand nas últimas décadas, como se ele fosse um espírito desencarnado com grande inclinação para a confusão, pouco tem a ver com sua trágica e triste origem. Este encadernado mostra essa angústia e posiciona bem o Desafiador dentro da esfera mística da DC. O personagem tem grande apelo dramático em minha opinião, o que foi muito bem explorado, por exemplo, em outra HQ de extrema referência chamada Deadman - Amor após a Morte publicada no Brasil ainda pela Editora Abril em 1990.


A edição Tex Gold - Em Território Selvagem é o Nº 45 da Coleção Tex Gold da Savat, atualmente em sua fase final aqui no Brasil. Tex é um dos personagens mais emblemáticos dos quadrinhos italianos e, para entender seu carisma é preciso imergir dentro das HQs do personagem. Ao fazer isso o leitor é rapidamente integrado à atmosfera selvagem do Velho Oeste, tendo em Tex a figura do herói do período que nada tem a ver com qualquer estereótipo panfletário. Nesta HQ, o DNA do personagem é muito bem apresentado, evidenciando Tex como uma mistura de homem simples, mas sábio, que sabe como e quando agir. As complexas situações nas quais ele é inserido são resolvidas de forma crível e permitem ao leitor uma imersão na época. Para quem, como eu, pouco conhece o personagem, será um prazer conhece-lo por meio deste volume. 


Demolidor por Frank Miller & Klaus Janson vol. 02 integra um pequena, mas brilhante coleção de encadernados da Panini com 3 volumes. Os encadernados apresentam a fase em que Miller construía uma nova abordagem do Demolidor no final dos Anos 70 (1979 à 1981). Estas histórias pavimentaram a mitologia urbana e definitiva do herói, retirando-o do ostracismo que ele amargava ao longo dos anos à época. Miller inovou com histórias que apresentavam a cidade como um lugar violento, perigoso, com muitos elementos dos filmes "noir". Coadjuvantes mundanos, tais como prostitutas, cafetões, criminosos e páreas dos mais variados tipos começaram a chamar atenção, aproximando O Homem Sem Medo a uma realidade crível, consolidando o caminho para o que viria logo a seguir, ou seja, uma das maiores histórias do Demolidor, a saber, A Queda de MurdockDemolidor por Frank Miller & Klaus Janson mantém o frescor das boas histórias e evidencia a mente de Miller e a arte de Janson.


Lançada pela Editora Panini em 3 volumes (o primeiro em 2016 e os dois últimos em 2018), Face Oculta foi uma das melhores coisas que li em 2020. O que pode parecer uma monótona HQ histórica, é na verdade um relato emocionante e cheio de viradas de um obscuro momento da história bélica da Itália. Escrita pelo roteirista, cantor e compositor italiano Gianfranco Manfredi, a obra narra a vida de Ugo Pastore, um jovem pacifista que se vê lançado dentro de uma Guerra infelizmente já esquecida atualmente. No final do século 19 a Itália voltou sua atenção colonialista para a África, mais especificamente para Etiópia, um importante local que serviria de base para suas intenções comerciais e territoriais. Diante deste painel político se sucedeu a 1ª Guerra Ítalo-Etíope (1895-1896) narrada na série. Face Oculta é uma obra extremamente interessante que chegou a chamar a atenção de militares italianos à época de sua publicação original em 2007. Cartas foram escritas para Manfredi por oficiais elogiando o resgate do autor e contribuindo com informações relevantes. Embora os 3 personagens principais da série sejam fictícios (Ugo Pastore, o Tenente Vitorio de Cesari e a jovem rica Matilde) os demais coadjuvantes que orbitam a trama são todos verídicos, o que expõe a complexidade de uma Guerra e toda maquinaria política por trás dela, isso tudo sem deixar a atenção do leitor se dissipar. A continuação do volume 3 foi financiada na plataforma de financiamento coletivo Catarse e se chama Shanghai-Devil, trazendo a continuidade das aventuras de Ugo Pastore. Uma iniciativa da Editora Red Dragon. Se você não conhece Face Oculta não perca tempo!


Após mais de 3 décadas A Saga do Monstro do Pântano de Alan Moore continua reverberando. Não há o que acrescentar aos adjetivos já usados para descrever o que Moore fez à frente do título. Ousado, brilhante, metalinguístico... Um trabalho que continua a nos impactar. Neste Livro Dois estão compiladas as edições originais de Swamp Thing Vol. 2 números 28 à 34 e ainda Swamp Thing Annual - Vol. 2 Nº 2. Especificamente neste Livro 2 da Panini temos o cerne do que Moore quis fazer com a criatura do Pântano. Encerra-se a conexão que ela tinha com Alec Holland, vemos se concretizar os planos malignos de Anton Arcane e temos como ápice disso a descida do personagem ao inferno através do "verde". Uma viagem não apenas espiritual, mas um mergulho nas concepções existenciais que nos rodeiam. Após este clímax Moore desacelera e publica três histórias autocontidas que são verdadeiras pérolas: Pog (#32), Abandonadas Casas (#33) e Rito de Primavera (#34). Pog é uma elegia à perda da conexão com a natureza, levando uma raça à melancolia e angústia ao se ver órfã no universo após degradar sua própria casa. Abandonadas Casas além de resgatar o passado do Monstro do Pântano, dá os primeiros passos para explicar o que realmente ele realmente é, ou seja, um Avatar do Verde. Rito de Primavera mostra a união sexual do Monstro com o Abigail Arcane, uma história que consegue traçar a profundidade que a união entre dois seres representa. Brilhante!


Em 2013 a Editora Devir iniciou a publicação de Imperdoável. Mas só foi a partir de 2018 (com a republicação do vol. 01) que a série ganhou fôlego no Brasil. Imperdoável é um trabalho autoral do conhecido e já laureado roteirista Mark Waid (Reino do Amanhã). A história é quase que um espelho distorcido do mito do super-herói. Tudo gira em torno de Tony, um super-herói que, tal qual Superman é todo poderoso, porém em algum momento Tony, ou melhor O Plutoniano (como é conhecido) sai dos "trilhos" e se torna um assassino em busca de vingança por todos os pequenos atos de rejeição que sofreu ao longo de sua vida. Por vezes o leitor se identifica com a solidão na qual Tony viveu e sofreu ao longo de sua vida, ao se ver sempre como um "inadequado", um "não aceito" em função de seus poderes que a todos inspirava um certo medo. A HQ é muito boa e não faz concessões aos atos de brutalidade de Tony. Mark Waid ao que tudo indica constrói um personagem além de qualquer redenção. Estes são os volumes 3 e 4. Uma série que tem valido muito a pena acompanhar!!


Embora já tenha ouvido falar muito de Hal Foster e seu Príncipe Valente, foi dentro da Coleção Príncipe Valente da Editora Planeta DeAgostini que finalmente pude entender porque o personagem é uma referência para toda 9ª Arte. Publicado ininterruptamente ao longo de décadas em formato de pranchas semanais desde 1937, Príncipe Valente de modo algum é datado. A coleção acompanha em ordem cronológica a epopeia do herói Arturiano. Com uma arte extremamente acadêmica e cheia de detalhes que nunca se chocam ou cansam, Hal Foster (que era também o desenhista da série) construiu um verdadeiro monumento perpétuo dentro dos quadrinhos. Cada volume da série é impressionante. Em 2020 pude ler apenas esse em função de muitas outras leituras acumuladas. Mas sem dúvida nenhuma Príncipe Valente estará entre meus destaques nos próximos anos!


Com o fim do selo Vertigo na DC, a Editora inseriu em seu lugar outro intitulado Black Label. E para mostrar seu investimento nesta iniciativa a DC trouxe diversos de seus medalhões para estrelarem histórias com desenhistas e roteiristas conhecidos, caso deste encadernado escrito por Brian Azzarello e desenhado pelo incrível Lee Bermejo. Embora tenha sido alvo de opiniões controversas (pelo que acompanhei nas redes sociais) Amaldiçoado foi uma grande experiência de leitura. Para além da óbvia e maravilhosa arte de Bermejo, com seu traço "encapotado", a história concebida por Azzarello é estranha e misteriosa. Para mim ficou clara a associação que o escritor faz entre Batman e Coringa, uma associação que transcende a realidade e a própria vida. Para mim o autor quis dizer, com o ambíguo final da história, que Batman e Coringa não são apenas dois lados da mesma moeda, na verdade talvez seriam a mesma manifestação. Em uma matéria que fiz apenas para discorrer sobre essa história lancei diversas conjecturas sobre o que Azzarello realmente quis dizer com aquele final. Sem dúvida uma obra que vale ser conhecida e dissecada em minha opinião.


Sou fã incondicional de Astro City, já expressei isso aqui no Blog em diversas matérias a respeito dos encadernados da série que já li (A Vida na Cidade Grande - Vol. 01; Confissão - Vol. 02; Álbum de Família - Vol. 03). Neste 4º Volume O Anjo Maculado, Kurt Busiek eleva ainda mais o nível de qualidade da série ao trabalhar a vida de Carl Donewicz, um criminoso que viveu relativos dias de glória na bandidagem no passado, mas que amargou 20 anos em uma prisão federal. Ao sair de lá, tudo que Carl quer é ficar em seu canto, sem arrumar confusão, sozinho com suas lembranças e, quem sabe num golpe de sorte fazer alguma coisa de bom na vida dentro do tempo que lhe resta. Ao desenhar Carl  Donewicz com a feição triste e cansada do ator Robert Mitchum o desenhista da série Brent Aderson acertou o tom perfeito para o personagem. Um trabalho primoroso que precisa ser redescoberto e apreciado. A série Astro City consegue, em cada um de seus volumes, desencavar os conceitos básicos dos super-heróis, transcendendo a avalanche dos inúmeros pastiches que invadiram o mercado dos quadrinhos (e que ainda existem) após a publicação de Watchmen de Alan Moore. 


Jeff Lemire é um dos roteiristas que vem se destacando no mercado dos quadrinhos, sobretudo em seus trabalhos autorais. É difícil dizer se suas histórias terão o impacto que as de outros grandes autores dos quadrinhos tiveram, mas sem dúvida nenhuma sua abordagem trafega dentro de um espectro da narrativa ficcional que gosto muito, ou seja, passeia pelo fantástico, terror, ficção científica... e tudo conduzido de uma forma a não engolir os dramas pessoais dos personagens. Há respeito por eles. Em Black Hammer, Lemire homenageia os quadrinhos de super-heróis trazendo suas versões de grandes heróis clássicos dos quadrinhos. É possível reconhecer facilmente amálgamas de Capitão América/Demolidor, o Caçador de Marte, além de Shazam... entre outros. Mas o grande mérito do autor é fazer esta homenagem de forma distorcida; por vezes parece que estamos em um episódio de uma série de terror que rapidamente migra para ficção científica que rapidamente se transforma em um episódio de Além da Imaginação (The Twilight Zone). Embora tenha lido algumas críticas negativas quanto à simplicidade do final da saga, mais do que o fim, a importância da série está na construção e ambientação de cada personagem. Muito bom!


Uma HQ que pareceu ficar um pouco à margem dos lançamentos mainstream foi Bowie - Stardust, Rayguns & Moonage Daydreams, um quadrinho feito de fã para fã do Camaleão David Bowie. A partir de um relato coerente, mas com uma atmosfera onírica, o autor apresenta os primeiros anos da carreira de Bowie. A história é recheada de referências musicais e episódios de bastidores do artista. Um dos grandes méritos é mostrar o processo criativo do músico que parecia ser algo quase "espiritual", ao se conectar com os personagens que eram gestados dentro de si e que erupiam em suas performances. As conexões de Bowie com o mundo pop foi tamanha que extrapolou os recônditos musicais, transbordando para a cultura cinematográfica e literária. Uma obra que precisa ser conhecida e reconhecida!


A nova série do Incrível Hulk indicada ao Prêmio Eisner chegou ao Brasil em 2019 e após angariar diversos comentários favoráveis nas redes sociais me chamou atenção. Li os dois primeiros encadernados em capa cartonada que a Editora Panini lançou no Brasil (recentemente saiu o volume 6). A abordagem do roteirista inglês Al Ewing é interessante e foge das muitas outras já feitas ao personagem. Com uma narrativa voltada para o horror e terror, o Gigante Esmeralda não parece mais o mesmo; para o leitor é até difícil reconhecer que um dia ele foi classificado como herói. Ainda é cedo para dizer para onde Ewing está indo, mas os dois primeiros volumes se mostraram interessantes. Ainda não tenho elementos para dizer se a série é ou não merecedora de tantos comentários positivos, mas no mínimo é uma HQ acima da média. Menção honrosa aqui!


O Fantasma é sem dúvida um herói com uma mitologia interessante mas que, para minha vergonha, nunca foi alvo de minha atenção. Lançado pela Editora Mythos o encadernado O Fantasma por Jim Aparo traz a passagem do desenhista pelo personagem, época em que o Espírito-que-Anda era publicado pela Charlton Comics. O volume congrega todas as histórias que saíram pelas mãos de Aparo, de abril de 1969 à junho de 1970. Embora os roteiros pareçam relativamente simples, é incrível como ficamos absortos no rico universo do herói. De alguma forma misteriosa o traço de Jim Aparo nos captura e transforma um material que poderia ser alvo apenas de fãs em algo que vai além. Acho muito injusto quando tentamos analisar uma obra à luz do nosso tempo. Para que ela seja devidamente apreciada cabe sempre o exercício de contextualiza-la à época. Quando fazemos isso percebemos o quanto livros, discos e quadrinhos mais antigos crescem. Caso façamos esse exercício aqui, teremos um material que passará de muito bom para ótimo. Destaque para a decisão da Mythos em preservar as propagandas que saíram nas revistas originais à época de seus lançamentos, o que auxilia grandemente na imersão que comentei acima. O brinde (um anel do Fantasma em metal), além do papel escolhido para impressão são outras decisões acertadas.

Bem amigos... Estes foram meus destaques em minhas leituras de quadrinhos em 2020. Li muitas outras coisas, mas acredito que a matéria evidencia obras que precisariam ser conhecidas ou que mereceriam sua atenção. Claro que há sempre a questão do "gosto pessoal", mas no geral as HQs aqui apresentadas possuem qualidade com certeza! Grande Abraço é um Feliz Natal à todos!!
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