A estética "Noir" nasceu para designar um subgênero de filme policial que buscava narrar a decadência humana em um cenário urbano de desesperança. Mas evoluiu e se expandiu para diversas expressões artísticas. Buscando o contraponto entre luz e sombra, a visão Noir buscava discutir o espírito humano quebrado e sem esperança. Daí os personagens que sempre orbitaram o gênero: prostitutas, policiais corruptos, falsários, jogadores, golpistas e os mais variados tipos de facínoras. Mas justamente ao apresentar este mundo da sarjeta e sem esperança, muitas dessas obras ofereciam redenção a partir da honestidade que os personagens passavam a ter consigo mesmos. Ao admitirem a própria culpa e caráter, tais anti-heróis ou, anti-heroínas, passavam a flertar ou sonhar com a redentora simplicidade da vida comum. Muitas vezes a nódoa do passado não deixava esses homens e mulheres se libertarem de suas vidas de crime ou de suas tristes existências. Esta nódoa continuava perseguindo-os e puxando-os para baixo. Pois bem... É dentro deste mundo alquebrado, sujo e sem esperança que se constrói a vida da Carl Donewicz. Um super-vilão que experimentou no passado longínquo uma certa respeitabilidade no mundo do crime, mas que amargou 20 anos em uma prisão. Estamos falando do Homem Blindado de Aço, ou simplesmente Blindado, o personagem central do 4º encadernado de Astro City no Brasil.
Astro City Vol. 1 - #14 |
Lançado em um único encadernado aqui no Brasil pela Editora Panini (Astro City Vol. 04), a epopeia de Blindado saiu lá fora em 1998 do número 14 ao 20 da revista Kurt Busiek´s Astro City, continuando a bem sucedida saga da cidade Astro City. Um universo criado e desenvolvido por Kurt Busiek e vencedor de diversos prêmios. A história de Carl Donewicz ou simplesmente Blindado se inicia quando sua sentença de 20 anos de prisão finalmente chega ao fim. Mas o homem que emerge da prisão retorna para a sociedade não em busca de vingança, mas sim de paz apenas. Não há raiva dentro de Carl, talvez apenas uma profunda fatiga emocional e uma grande vontade de ficar só consigo mesmo e com suas recordações. Não é à toa que o desenhista oficial da série, Brent Anderson, buscou retratar Blindado com as feições do ator americano Robert Mitchum, com seus "olhos inchados e sua atitude de cansado da vida", conforme as próprias palavras de Kurt Busiek nos extras do encadernado. Astro City é uma obra-prima em vários sentidos, e já comentei isso em outras matérias aqui no Blog sobre os volumes 01, 02 e 03 lançados pela Editora Panini no Brasil. O Anjo Maculado mantém a mesma premissa dos volumes anteriores, ou seja, de se escrever sobre super-heróis e super vilões como se realmente existissem em nosso mundo.
Astro City Vol. 1 - #15 |
Minha expectativa em relação à Astro City sempre foi alta. Mas quando vi a temática desta série do Blindado, fui logo fisgado. Acredito muito que o que importa na vida são as coisas que a maioria de nós acaba não dando muita atenção. Sobretudo nos dias atuais de "culto à imagem e à forma". É por isso que a temática central da estética "Noir" sempre me fascinou, ou seja, o ser humano que descobre sua fragilidade, vícios, virtudes e começa o longo caminho da aceitação pessoal e redenção. É dentro desta perspectiva que Busiek desenvolve a história de Carl Donewicz, que logo percebe a impossibilidade de se reintegrar à sociedade dado seu histórico. Assim, ele começa a se ver impotente diante do assedio daqueles que continuam acreditando na vida de crimes. A única ocupação que lhe resta é então aceitar um trabalho como investigador das mortes de diversos vilões que já estavam aposentados.
Astro City Vol. 1 - #16 |
Por conta desta investigação vemos desfilar ao longo das páginas uma galeria de vilões que, tal como Carl, viram a vida escorrer por seus dedos. Sonhos que não se realizaram, golpes e roubos sempre fadados ao fracasso pela intervenção dos super-heróis. Esta perspectiva do vilão é de certa forma muito inovadora. Kurt Busiek tenta dissecar as motivações de tantos vilões que, mais do que uma vilania inata, eram motivados (talvez) por um desajuste junto ao status quo vigente. Uma dificuldade de se enquadrar no formato social aceito. Obviamente que há os vilões que possuem uma motivação essencialmente maligna, mas há aqueles que sonharam alto fora dos caminhos socialmente aceitos.
Astro City Vol. 1 - #17 |
A ambientação da história é muito concreta. Por alguma razão, todos párias e supervilões aposentados e em fim de carreira acabaram se concentrando no lugar que, historicamente, sempre fora o mais barra pesada de Astro City, o Bairro onde fica a Praça Kiefer. Um local que até já viveu seus dias de glória de banditismo, mas hoje é apenas um bairro onde muitos antigos vilões tentam afogar as mágoas e ainda manterem suas famílias. É para este lugar que Blindado retorna, já que foi ali que cresceu e ali que virou quem é. O Bairro orbita a praça, e a praça abriga um cemitério, lugar onde a maioria de amigos e parentes estão enterrados, inclusive a mãe de Blindado. É esta concretude na ambientação que ajuda o leitor a se identificar mais ainda com o drama de Blindado e de seus "amigos".
Astro City Vol. 1 - #18 |
Outro ponto que não posso deixar de comentar é a visão que Blindado tem dos super-heróis, principalmente do principal grupo de super-heróis de Astro City, a Guarda de Honra (uma espécie de Liga da Justiça do universo do universo ficcional de Astro City). Diferentemente do que se poderia esperar, a visão de Blindado acerca do super-heróis não é de rancor. Fica claro que ele já passou dessa fase há muito tempo. É uma visão que chega a ser de admiração por terem escolhido o caminho que talvez fosse o mais difícil, o de construir algo lentamente em benefício do próximo, e não optarem pelo ganho fácil em benefício próprio. Isso pode soar "piegas", mas a forma que Busiek construiu Blindado nos faz crer realmente na sua sinceridade em relação a esta visão.
Astro City Vol. 1 - #19 |
Nesta perspectiva de certa admiração de Blindado pelos super-heróis, o leitor chega a se ressentir pelo fato dos heróis continuarem enxergando Blindado como alguém incorrigível e sem possibilidade de redenção. A maioria deles está sempre com "os dois pés atrás" em relação a reabilitação do ex- presidiário. Isso mostra o quanto uma visão maniqueísta de mundo pode atrapalhar a aproximação de pessoas. Mas não espere um desfecho cheio de glória e reconhecimento pelos sacrifícios de Blindado, e aqui está novamente um acerto de Busiek, ou seja, no mundo real dificilmente você consegue apagar o passado. O que conseguimos apenas é seguir em frente. Ao optar pela visão mais realista, Busiek trás densidade para a história.
Astro City Vol. 1 - #20 |
O encadernado da Panini vem com interessantes extras nos quais Kurt Busiek comenta um pouco os personagens. São comentários muito interessantes. E para quem não sabe, Busiek enfrentou muitos problemas de saúde ao longo de toda a saga de Astro City. Sua insistência e perseverança para manutenção da história tem sido um grande exemplo. E não esqueçamos que ele está por trás de uma outra HQ imortalizada na 9ª arte, MARVELS. Espero que a Panini continue a publicação de Astro City. Os quadrinhos precisam de histórias como essa para nos lembrar porque gostamos tanto de HQs.
Robert Mitchum |
Muito bom texto. Realmente se tem 2 HQs que são diferenciadas na sua abordagem ao universo dos super-heróis são Astro City e Tom Strong. Essa abordagem realista de Busiek deu início a uma escola mas ele é insuperável. o anjo maculado é uma história que podemos ver muito na vida real. A falta de chances e de apoio leva muitos de volta a uma vida que a sociedade não lhes permite deixar. Tua análise foi muito boa. parabéns.
ResponderExcluirPrezado Murilo
ExcluirEm primeiro lugar perdoe-me a demora em responder. O trabalho anda muito puxado. Fiquei muito contente com seu comentário. Há realmente uma melancólica delicadeza nessa história. Terminamos de ler com a sensação de valorizarmos as coisas simples da vida e, como diria Lulu Santos, "de se querer o que se tem".
Tom Strong está na minha pilha, e depois desta sua comparação fiquei extremamente interessado em passa-la na frente.
Mas voltando à Astro City, eu diria que Busiek foi muito feliz em suas escolhas. Até mesmo em usar Robert Mitchum como modelo.
Apareça sempre Murilo!!
Abcs!
Marcelo
Bela resenha Marcelo, me deixou com vontade de ler. Li os primeiros volumes de Astro City e gostei bastante mas acabei não lendo esses números.
ResponderExcluirAbraço!