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quarta-feira, 31 de março de 2021

A Cidade e a Cidade - China Miéville

Nascido em 1972 na Inglaterra, China Miéville é um autor que se afasta de vários clichês. Conheci seu livro A Cidade e a Cidade quando ele chegou ao Brasil pela Editora Boitempo por volta de 2014. Mas apenas recentemente pude lê-lo. Ambientado em dois países fictícios do leste europeu, o livro inova em vários pontos, o primeiro e mais visível logo no início é a "ambientação". O autor faz o leitor imergir em um universo pouco conhecido de nós ocidentais, o universo cultural e linguístico dos países pobres desta região do planeta. Isso cria uma sensação estranha, quase "noir". Reconhecemos algo culturalmente familiar, mas ao mesmo tempo diferente. Há também uma sensação de "anos 80", embora elementos atuais estejam presentes, celulares, computadores, windows, internet...


Outro ponto inovador é a linguagem. Há palavras relativamente estranhas que inicialmente pensei até serem erros de tradução. No entanto, o próprio tradutor Fábio Fernandes explica em um posfácio a intenção do autor de relativizar alguns termos e criar novos para alterar a percepção do leitor. Para aqueles que gostam de livros que mais parecem roteiros de filmes (com ação desenfreada já na primeira página) e não tem a paciência de serem levados pela mão lentamente para um universo diferente, o livro poderá ter um ritmo estranho. Mas a atmosfera sólida e crível criada por Miéville nos ajuda nos sustentando na leitura.










A temática central é muito intrigante e cheia de simbolismo. Poderiam duas cidades coexistirem em um mesmo espaço enquanto unidades autônomas? Seria possível você cruzar com pessoas, carros, animais e desvê-los? Pois é isso de que trata A Cidade e a Cidade. Duas cidades-estado (Beszél e Ul Qoma) que estão entrelaçadas mas cujos respectivos cidadãos não podem ter contato uns com os outros e mais, não podem se ver. As conexões entre as cidades existem apenas em alguns pontos específicos (pontos de cruzamento) em que se tornam claramente visíveis uma para outra. Esta situação de separação é controlada por uma corporação superior à polícia local conhecida como A Brecha. Responsável por manter as cidades separadas em sem contato, A Brecha é algo que ninguém entende muito bem, mas sempre que cidadãos de cidade diferentes possuem algum contato A Brecha se faz presente quase que de forma onipresente. 














A trama principal é descortinada já na primeira página com o assassinato de uma jovem encontrada morta em terreno baldio. É destacado para a investigação o personagem principal, o detetive de meia idade Tyador Borlú. Borlú começa a cavar e a puxar os fios por trás do assassinato e evidências estranhas ligando à jovem morta à separação das duas cidades começam a aparecer. O autor teve o cuidado de não descambar nem para o universo detetivesco mais profundo, e nem para os mistérios envolvendo a natureza da Brecha, balanceando este dois pontos de forma equilibrada. Toda essa construção separatista tem muito simbolismo com o nosso mundo, a começar pelas cidades dentro de cidades nas quais moramos. Comunidades carentes urbanas ao lado de ilhas de prosperidade, cidadãos que dividem o mesmo espaço mas que praticamente não se veem, ou não se notam...











Mas se você pensa que Miéville cairá na cilada de um discurso moralista de união entre povos, você se engana, pois com o passar dos capítulos parece que de alguma forma esta estrutura de separação possui algum motivo, seja ele bom ou não, para a preservação das culturas e das identidades das pessoas. Isso torna o livro mais profundo. É difícil dar uma nota para a obra, uma vez que ela parece ter vários lados e ser multifacetada. Talvez por isso Neil Gaiman a tenha chamado de "A Ficção do Novo Século". Entendo as palavras de Gaiman no sentido de que vivemos tempos complexos, em que a realidade é construída dentro de estruturas complexas de poder e, o discurso antigo, tanto de direita quanto de esquerda, de se moldar um povo a partir de pensamentos e ideologias maniqueístas não consegue mais dar conta do mundo atual.








Talvez seja nessa dimensão complexa que o livro se encaixe e assim ganhe relevância. É interessante notar, no entanto, que, embora a Editora Boitempo pareça ter uma maior preferência editorial por obras libertárias e (aparentemente) socialistas, A Cidade e a Cidade não parece ser um livro que advogue explicitamente esta causa. Ao que me parece China Miéville transcende o discurso raso do preto e branco. Algo tão necessário atualmente. Talvez por isso o autor foque o microcosmo dos personagens envolvidos com o assassinato da jovem e não as estruturas de poder ao redor. E isso vai ao encontro do que eu acredito, ou seja, que o importante são PESSOAS.








PS.: Aparentemente o livro foi adaptado como minissérie pela BBC Two. Se quiser assistir ao trailer clique aqui.

sábado, 27 de março de 2021

Pílula Fílmica #15: Liga da Justiça de Zack Snyder (2021)

O que aconteceu com a Liga da Justiça de Zack Snyder foi o maior exemplo da ingerência de acionistas e diretores que, ao farejar mais lucro, se deixaram levar por qualquer oscilação do mercado para esta ou aquela tendência. Quem acompanha há algum tempo a história do Universo Cinematográfico DC sabe o quanto a Warner ficou preocupadíssima quando começou a ver as cifras astronômicas do Universo Marvel e simplesmente cresceu os olhos mudando uma estratégia que vinha sendo feita desde Superman - O Homem de Aço (2013). O grande ponto de mutação ocorreu em Esquadrão Suicida 1 (2016). Um filme que tinha todos os elementos voltados para o lado obscuro dos heróis e apostava nas neuroses dos personagens. Receosos de manter a estratégia, o burocratas começaram ali sua mudança de foco baseados simplesmente no perfil momentâneo das redes. Por conta disso, quase não vemos a verdadeira visão de Zack Snyder para a Liga da Justiça. Um filme que em minha opinião conseguiu aprofundar o universo pessoal de cada herói e colocou, acertadamente, Superman como apenas mais um membro da equipe, ou seja, o que faz o grupo funcionar não é magnitude dos poderes, mas sim a confiança, trabalho em equipe e empatia que existe entre os integrantes. Há várias cenas incríveis, mas uma em particular me chamou atenção pelo peso dramático dado, sobretudo, por Jared Leto. A cena do diálogo entre Coringa e Batman na linha de tempo alternativa ou "pesadelo" de Bruce Wayne. Finalmente Jared Leto mostra, em poucos minutos, um Coringa cheio de camadas, insano, mas ao mesmo tempo com uma estranha e bizarra fragilidade naquele momento de derrocada. Uma cena para entrar para meu hall de melhores cenas. É impossível não ver ecos de outro filme de Snyder, Watchmen (2009) (para mim um dos melhores filmes de heróis feitos até hoje - claro, opinião pessoal). Tal qual em Watchmen, na Liga da Justiça de Zack Snyder vemos uma relativa desconstrução dos super-heróis que se veem incapazes de lidar com a realidade e acabam por demonstrar seu lado humano, falho e, por que não, frágil. Há também o clima de fim muito palpável na trama. Muitas HQs nas últimas décadas passaram a flertar todos os meses nas bancas com o fim do mundo, banalizando o conceito e não mais conseguindo passar para o leitor a angústia, desesperança e sentimento de melancolia que algo assim traria à todos. De uma forma muito sútil eu acho que Snyder conseguiu imprimir nos personagens e, portanto, no público, esse sentimento de "fim". Pena que, ao que tudo, indica a Warner já sinalizou veementemente que essa visão de Snyder não será continuada. Uma triste história em que, novamente, o dinheiro, e não a arte, ditaram a sobrevivência de uma obra.







domingo, 21 de março de 2021

Pílula Gráfica #5: Traço de Giz (2021)

O mar possui sons... Obviamente que possui. E todo mundo já deve ter ouvido os sons do mar. Mas há algo abaixo dos sons que é mais que um "som" ou "sons", já que parece se constituir em "música". Algo muito sutil e que talvez seja feito da junção das diversas sensações sonoras, táteis e visíveis do mar. Uma espécie de música ancestral que de alguma forma possui uma estranha familiaridade à nós, como que a nos puxar para algo mais profundo. Não à toa, essa "música" já foi eternizada em mitos, como no caso do "canto da sereia". Algo com profundo efeito hipnótico, catártico e lisérgico. A 9ª Arte, ou Arte Sequencial, ou simplesmente narrativa gráfica é talvez uma das formas de representação artística (ao lado da 7ª Arte) que melhor consegue juntar duas representações profundas... imagem e palavras à ponto de conseguir evocar uma terceira, a sonora. Embora a HQ do espanhol Miguelanxo Prado não venha equipada com trilha sonora, não há necessidade disso mesmo, já que a própria HQ consegue produzi-la em nossa mente. E essa trilha nada mais é do que os sons do mar aos quais me referi acima. Traço de Giz é uma obra que consegue emoldurar uma história de amor que pode até parecer simples, mas que ao ter a moldura do mar e das imagens perfeitamente ilustradas pelo autor, transcende o patamar de história e pode ser chamada de "lenda", "conto", "mito"... E quando me refiro à esses termos evoco a atmosfera fantástica de cada um deles. Uma pequena ilhota perdida no oceano, e que não consta em nenhum mapa náutico, é às vezes encontrada por algum navegador ou velejador relativamente perdido. Assim começa a narrativa de Traço de Giz, com o velejador Raul chegando à peculiar ilhota que possui apenas um longo e alvo atracadouro ou píer ao lado de um montículo de terra no qual uma estalagem ou pousada existe administrada por uma mulher e seu filho. Ali, Raul conhece outra hóspede, uma outra reflexiva e relativamente enigmática velejadora que aportou a ilhota há alguns dias atrás. Para o leitor relativamente atento, a obra facilmente se converterá em uma narrativa fantástica, uma vez que fica claro que tudo que Raul vivencia na ilha é absolutamente real, porém tangenciado (como um ruído de fundo) por uma atmosfera "fantástica", "onírica"... Prado consegue imprimir esse ruído hipnótico de fundo ao longo de cada quadro da história, transformando Traço de Giz em uma obra-prima que finalmente chega ao Brasil. Leia Traço de Giz com a mente embalada pelas vagas, espumas e sons do mar.





sexta-feira, 12 de março de 2021

Pílula Fílmica #14: Mandy - Sede de Vingança (2018)


Quanto mais Nicolas Cage se distancia de Nicolas Cage mais ele consegue chegar no que Nicolas Cage tem de melhor. Ficou confuso? Bem... O que quero dizer é que finalmente Nicolas Cage se tornou o "Motoqueiro Fantasma" que deveria ter sido nos filmes da Sony Pictures de 2007 e 2011. É interessante perceber como a produção independente ou fora do circuito dos grandes estúdios pode dar a necessária liberdade para uma história ser contada e um ator ser levado ao seu limite de interpretação. Mandy é um filme dirigido pelo Diretor Canadense Panos Cosmatos que situa Nicolas Cage (Red) e sua esposa Mandy (Andrea Riseborough) em pleno ano de 1983. Com uma atmosfera onírica e uma cenografia propositalmente oitentista, o filme consegue ser tudo ao mesmo tempo: sinistro, poético, místico, bizarro, inverossímil, realístico, ultra-violento... A história (sem spoiler) coloca Red em confronto direto com uma seita que aparentemente consegue invocar estranhos seres infernais que lembram diretamente o visual de Hellraiser - Renascido do Inferno, filme de 1987. Nicolas se solta como ator em uma espiral de loucura e vingança que o aproxima muito do conceito que deveria ter sido seguido no filme do personagem da Marvel, Motoqueiro Fantasma. Com uma simbologia arcana muito forte, o filme é cheio de lugares, expressões e signos que dão credibilidade à história, uma vez que o telespectador se sente tragado por um mundo a parte do mundo real mas que, ao mesmo tempo, está dentro do mundo real, nós apenas não percebemos sua existência. Cage consegue catalisar uma fúria insana e infernal. O espectador mais antigo ficará satisfeito por filmes assim ainda serem feitos. Filmes com a ousadia necessária para transpor o cotidiano e ordinário. Confesso que ao lado de Hereditário (2018), Mandy - Sede de Vingança é um filme para deixar sua marca na década.






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