A temática central é muito intrigante e cheia de simbolismo. Poderiam duas cidades coexistirem em um mesmo espaço enquanto unidades autônomas? Seria possível você cruzar com pessoas, carros, animais e desvê-los? Pois é isso de que trata A Cidade e a Cidade. Duas cidades-estado (Beszél e Ul Qoma) que estão entrelaçadas mas cujos respectivos cidadãos não podem ter contato uns com os outros e mais, não podem se ver. As conexões entre as cidades existem apenas em alguns pontos específicos (pontos de cruzamento) em que se tornam claramente visíveis uma para outra. Esta situação de separação é controlada por uma corporação superior à polícia local conhecida como A Brecha. Responsável por manter as cidades separadas em sem contato, A Brecha é algo que ninguém entende muito bem, mas sempre que cidadãos de cidade diferentes possuem algum contato A Brecha se faz presente quase que de forma onipresente.
A trama principal é descortinada já na primeira página com o assassinato de uma jovem encontrada morta em terreno baldio. É destacado para a investigação o personagem principal, o detetive de meia idade Tyador Borlú. Borlú começa a cavar e a puxar os fios por trás do assassinato e evidências estranhas ligando à jovem morta à separação das duas cidades começam a aparecer. O autor teve o cuidado de não descambar nem para o universo detetivesco mais profundo, e nem para os mistérios envolvendo a natureza da Brecha, balanceando este dois pontos de forma equilibrada. Toda essa construção separatista tem muito simbolismo com o nosso mundo, a começar pelas cidades dentro de cidades nas quais moramos. Comunidades carentes urbanas ao lado de ilhas de prosperidade, cidadãos que dividem o mesmo espaço mas que praticamente não se veem, ou não se notam...
Mas se você pensa que Miéville cairá na cilada de um discurso moralista de união entre povos, você se engana, pois com o passar dos capítulos parece que de alguma forma esta estrutura de separação possui algum motivo, seja ele bom ou não, para a preservação das culturas e das identidades das pessoas. Isso torna o livro mais profundo. É difícil dar uma nota para a obra, uma vez que ela parece ter vários lados e ser multifacetada. Talvez por isso Neil Gaiman a tenha chamado de "A Ficção do Novo Século". Entendo as palavras de Gaiman no sentido de que vivemos tempos complexos, em que a realidade é construída dentro de estruturas complexas de poder e, o discurso antigo, tanto de direita quanto de esquerda, de se moldar um povo a partir de pensamentos e ideologias maniqueístas não consegue mais dar conta do mundo atual.
Talvez seja nessa dimensão complexa que o livro se encaixe e assim ganhe relevância. É interessante notar, no entanto, que, embora a Editora Boitempo pareça ter uma maior preferência editorial por obras libertárias e (aparentemente) socialistas, A Cidade e a Cidade não parece ser um livro que advogue explicitamente esta causa. Ao que me parece China Miéville transcende o discurso raso do preto e branco. Algo tão necessário atualmente. Talvez por isso o autor foque o microcosmo dos personagens envolvidos com o assassinato da jovem e não as estruturas de poder ao redor. E isso vai ao encontro do que eu acredito, ou seja, que o importante são PESSOAS.
PS.: Aparentemente o livro foi adaptado como minissérie pela BBC Two. Se quiser assistir ao trailer clique aqui.