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terça-feira, 1 de julho de 2025

Viagem Literária - 2024


Quais lugares você visitou em 2024 através dos livros que leu? Já pensou em descrever essas experiências mentais como se fosse uma viagem? Livros oferecem esta dádiva ao nos presentear com viagens pelo tempo e espaço. Mais que itens que se acumulam na estante, livros transcendem a prerrogativa de "coisas" adquiridas, por isso, lidos ou não, do alto da estante eles nos observam pacientemente com seus portais a serem abertos e descobertos. Esta foi minha viagem em 2024.


Graças ao cenário editorial dos últimos anos no Brasil, o resgate histórico de quadrinhos maravilhosos e esquecidos, bem como a trajetória de importantes artistas, passaram a ter seus registros restaurados e preservados. Rodolfo Zalla - O Sentido de Tudo é um livro incrível do jornalista Gonçalo Júnior que resgata a história do Mestre do Desenho Rodolfo Zalla, desenhista argentino que fez carreira no Brasil. Gonçalo descreve a trilha artística de Zalla com acurácia histórica mas, sobretudo, com o carinho, respeito e honestidade que só um fã da 9ª Arte pode dar. A leitura passa pelos primeiros anos de Zalla e os motivos que o levaram a emigrar para o Brasil. Entretanto, a grande descoberta ao ler o livro é a constatação da incrível pessoa que o desenhista era e os diversos personagens com os quais ele trabalhou. Impossível separar o legado do artista da história das Histórias em Quadrinhos no Brasil. Um livro imperdível para qualquer pessoa que minimamente gosta de quadrinhos e tem sensibilidade suficiente para olhar para as mãos e mentes por trás desta arte que tanto amamos.


Coelho Neto (1864-1934) foi um escritor, político e professor brasileiro membro da Acadêmica Brasileira de Letras. Em função da excelente curadoria de Editoras como Clepsidra, Melusine Press e O Grifo Editora, Neto tem sido redescoberto por um público que, embora pequeno, mostra-se fiel. Dono de uma prosa encantadora e envolvente, Coelho Neto tem algumas obras que não viam a luz há mais de 100 anos. Verdadeiras pérolas da literatura fantástica brasileira. O livro Melusina e Outros Contos Fantásticos (Editora Melusine Press) reúne contos originais publicados pela Editora Garnier (na França e no Brasil) no início do século XX. Entrar em contato com estes contos não se trata apenas de resgate histórico, ou puramente um deleite  intelectual egocêntrico para satisfazer a vaidade literária de um caprichoso leitor, é entrar em um ambiente cheio de pérolas escondidas e ser transposto para uma realidade palpável, caprichosa, extravagante e fora do comum.


Antes de saber que A Trilogia dos Três Corpos iria se tornar série pela plataforma de streaming NetFlix, interessei-me pela obra do chinês Cixin Liu. Ao me meter com ela, eu sabia que se tratava de 3 livros, mesmo assim decidi entrar nessa. Liu é acessível em sua escrita e constrói um universo com personagens críveis e consegue colocar muito de suas dores e feridas políticas e familiares no seu texto. O autor faz isso ao inserir sua narrativa no contexto histórico da Revolução Popular Chinesa, que teve como propulsor o Partido Comunista chinês. Um mergulho nos traumas que este evento histórico deixou em seu povo. Mas tudo isso dentro de uma obra de ficção científica de primeira grandeza que possui como evento central a recepção e resposta de um sinal advindo de um mundo distante. Liu brinca com a perspectiva de como a humanidade reagiria frente a constatação de que receberemos, em algum momento no futuro, a visita dominadora de seres mais avançados do que nós. Mas mais que isso, o autor deixa transbordar para fora de suas páginas a frustração e decepção com a índole humana.


Longe de ser um relato convencional sobre a vida no Western selvagem, Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy é uma obra de difícil digestão, não apenas pela violência nua e crua que traz, mas também por McCarthy escrever, propositalmente, de forma praticamente contínua, sem as pontuações que, em geral, delimitam diálogos e nos dão o efeito de continuidade. Isso faz da obra um "cavalo" a ser domado à força, o que exige do leitor perseverança. A despeito disso, o autor nos entrega um livro que pode ser facilmente descrito como monumental e universal dado a profundidade com que alcança a selvageria implantada no homem em todo seu efeito destrutivo. Além disso, nos apresenta um dos "vilões" mais complexos, perigosos e terríveis que já conheci, o Juiz Holden. Não pude deixar de encontrar paralelos em outro personagem tão brutal e complexo quanto ele, o personagem Kurtz, comerciante de marfim que se embrenha na floresta do Congo e lá se deixa seduzir pela profundidade do horror no romance O Coração das Trevas de 1902 de Joseph Conrad. Meridiano de Sangue trabalha com a mesma matéria prima que Conrad trabalhara em 1902, só que agora tendo como pano de fundo o West sem lei e o choque entre povos. Publicado em 1985, Meridiano de Sangue transcende seu propósito e poderia muito bem ser analisado por meio de diversos matizes. McCarthy é autor também de outro grande livro, Onde os Velhos não Tem Vez, adaptado para o cinema como Onde os Fracos não Tem Vez.


Se por um lado a literatura Pulp foi seminal em lançar diversos autores, hoje aclamados, por outro, alguns autores ficaram, injustamente menos conhecidos do grande público. Caso, por exemplo, de Tod Robbins. Robbins foi autor de diversas obras, dentre elas o conto Spurs (Monstros), publicado em 1923. Conto que depois ganhou as telas no famoso e, por que não "maldito", filme de 1932 FREAKS, dirigido por Tod Browning. "Maldito" porque o filme ficou banido na Inglaterra por 30 anos. A Editora Andarilho veio preencher uma grande lacuna existente no Brasil ao trazer uma assinatura por meio da qual o leitor recebe mensalmente um livro de bolso da Era Pulp (muitos inéditos no Brasil) de autores que brilharam e delinearam as bases do terror, horror, ficção científica e fantasia. É nesta coleção da Editora Andarilho que se insere o livro Pela Arte de Tod Robbins. A coleção vale a pena de ser assinada, não apenas pela qualidade do material, mas também pelo cuidado editorial. Autores como Algernon Blackwood, Arthur Machen, Gertrude E. Trevelyan, Gertrude Barrows Bennett, são apenas alguns dos exemplos. No caso de Pela Arte temos uma narrativa envolvente onde um artista cruza o caminho de outro. Este último, de nome Martin, levará nosso protagonista às raias da loucura ao escrever de forma vívida acerca de experiências macabras e terríveis. Robbins busca elucidar o poder da arte sobre a psiquê humana, bem como sua potencia ao desencadear sentimentos dos mais profundos e, às vezes, inumanos em nós. Recomendo muito!!

E sua viagem literária em 2024? Qual foi? Deixe nos comentários.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Destaques 2024 - Quadrinhos

Finais de ano são encerramentos de ciclos. Momentos para olharmos para trás, agradecermos e celebrarmos destaques e conquistas. Vamos viajar agora por entre minhas melhores leituras de HQs de 2024. O objetivo será exaltar as "leituras" e não os lançamentos, até porque para nos propormos a falar de lançamentos minha demanda de leitura seria enorme frente à tantas excelentes obras que chegaram ao Brasil em 2024. A ordem das obras aqui expostas obedecem minha ordem de leitura.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 01

2024 foi, definitivamente, meu ano de descoberta desta série sobre a qual há muito tempo me chegavam elogios, mas que pela demanda de outras leituras eu postergava conhece-la. Estou falando de Júlia Kendall - Aventuras de uma Criminóloga. Por puro preconceito, eu associava a série à alguma memória de séries para público juvenil, daí meu desinteresse. Para me convencer a dar uma chance foi preciso receber muitas informações e elogios sobre a série, e perceber que seu autor era o mesmo do grande e excepcional Ken Parker. Só lamento ter esperado tanto para ler Júlia Kendall. No Brasil temos uma publicação relativamente farta da personagem e não foi difícil conseguir os números. Fiquei realmente surpreso com a qualidade do material, com as referências e com todo o universo coeso e crível de Júlia. Não dá para separar uma edição específica, por isso meu destaque vai para todas que li esse ano.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 02

Se no número 1 de Júlia, somos apresentados ao universo da personagem de forma sutil, lá também conhecemos aquela que viria a ser sua nêmese, a assassina Myrna. Uma garota que embora venha de um relacionamento difícil com o pai, é uma pessoa sem quaisquer escrúpulos para matar. É no número 2 que vemos se desenvolver uma atração de Myrna pela mente astuta e sagaz de Júlia. O leitor percebe então o qual real, acadêmica e crível é a narrativa de Giancarlo Berardi acerca da mente criminosa dentro das quais a criminóloga mergulha.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 03

É no número 3 que o primeiro arco de confronto entre Júlia e Myrna se conclui. Estratégia, violência e muito suspense demonstram ao leitor o tipo de obra que é Júlia. Berardi se esmerou na construção da personagem, frequentando cursos e lendo muito acerca de criminologia. Como resultado Júlia se constitui em um palco sobre o qual a aparente fragilidade da personagem (inspirada fisicamente na atriz Audrey Hupburn) se contrasta com a maldade, violência e visão doentia de mundo de muitos criminosos.

Júlia - Aventuras de uma Criminóloga - Nº 04

Os personagens que orbitam a vida da criminóloga, que também é professora na Universidade local na cidade de Garden City, são muito interessantes. E um provável interesse romântico se insinua entre o irascível e cuidadoso Tenente Webb (na capa acima em 2ª plano) na 4ª edição. Longe de ser expressão da masculinidade e beleza Hollywoodianas, Webb ganha o leitor pela personalidade forte e constantes confrontos com Júlia. Outro personagem, o Sargento Irving, é destaque também. Obeso, alto e com um profundo instinto protetor junto à Júlia, Irving é um excelente policial. Sempre pronto para agir frente às situações mais perigosas. Se você não conhece o universo de Júlia, ou sempre postergou a leitura, não perca mais tempo.


A Sergio Bonelli Editore foi a minha grande descoberta desta última década e, como consequência, vários títulos aqui são desta gigante italiana. Morgan Lost é um personagem que: a) pela sua proposta noir; b) seu universo no estilo Art Deco; c) e história de crimes consistentes, invadiu forte minha estante. Solitário, com sutis crises existenciais, atormentado pelos fantasmas dos assassinos que já matou, Morgan Lost vale muito a pena e sai no Brasil pela Editora 85


Jeff Lemire tem deixado sua marca na 9ª Arte já há algum tempo. O Soldador Subaquático, Black Hammer, Gideon Falls entre outros já apontaram para o estilo, sensibilidade e imaginação para o fantástico do autor. Nada a Perder estava na minha pilha há algum tempo e quando o peguei para ler eu não estava com tantas expectativas, considerando que um leitor de longa data sempre sabe que é difícil para um autor manter sua narrativa significativa ao longo de várias obras. Quando lemos Nada a Perder fica claro que Lemire não pretendia mesmo torna-lo um clássico (pelo menos foi minha percepção), uma vez que a obra se re-ssignifica e cresce justamente por trazer apenas a vida de um sujeito comum (nada mais). Mas que dentro de sua vida comum, seus sonhos desfeitos, erros cometidos e relacionamentos destruídos é que a história cresce. A arte meio "quebrada" de Lemire dá assimila muito bem personagens "quebrados" por dentro. Canadense, Lemire sabe trabalhar bem as paisagens geladas, melancólicas e aparentemente sem vida do norte do Canadá onde se passa a história.


Ao lembrar que de Marvel e DC também se vive a vida de um leitor, trago o ótimo Capitão América por Jim Steranko. O encadernado é um recorte de uma determinada fase do Sentinela da Liberdade, mais especificamente Captain America n° 110, 111, 112 e 113, todas de 1969. Uma fase em que seu descongelamento e reinserção à sociedade moderna da década de 60 ainda estava ocorrendo. Com isso, sua angústia pelo passado perdido, saudade de pessoas queridas (principalmente seu parceiro Buck Barnes) ainda o assolava de forma esmagadora. Um leitor desavisado que for ler o encadernado pode ficar com a impressão de que a história sai de um determinado lugar e vai para lugar nenhum. Isso não está totalmente errado porque trata-se apenas do recorte de uma fase, entretanto, este pequeno recorte cresce incrivelmente na arte de Steranko, artista rebelde, que soube inserir, na sua passagem pelos quadrinhos, colagens e inovações marcantes. O resultado é que este encadernado se torna uma pequena pérola representativa da arte do artista.


Desde 2019 (data de seu lançamento), ouço falar sobre Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias de Jefferson Costa. Muitos elogios e críticas positivas... Acontece que quando finalmente decidi ler a obra confesso que não foi fácil lê-la. A obra possui uma narrativa truncada (propositalmente (creio eu)), com o passado se misturando com o futuro sem grandes explicações. Um painel narrativo construído sem compromisso com a linearidade ou entendimento do leitor. Sabemos que há muito significado em cada quadrinho... mas ao mesmo tempo essa significância nos escapa... deixando tudo ao mesmo tempo fluido e profundo (se é que dá para colocar estas duas palavras quase antônimas na mesma frase). O fato é que quando terminei de ler tive uma sensação estranha, sabia que tinha gostado, mas ao mesmo tempo a obra deixa um desconforto. Talvez por representar bem o próprio ônus de se viver. Uma obra que decididamente eu precisaria reler.


A Coleção Epic da Marvel iniciou há não muito tempo nos mesmos moldes da sua proposta nos EUA. Momentos épicos de determinado personagem ou grupo. Neste volume, Liberdade, traz uma fase do Surfista Prateado que sempre quis ler: a fase da sua libertação da barreira de Galactus que o mantinha preso à Terra desde sua rebelião contra o Devorador de Mundos que ocorreu em Fantastic Four Nº 50 de 1966. As inúmeras tentativas de se libertar da barreira sempre foram angustiantes para todos que cresceram lendo o universo Marvel. A liberdade definitiva, entretanto, só ocorreu em Silver Surfer - vol. 01 - Nº 01 de 1987. Embora tenham se passado 21 anos entre 1966 e 1987, a verdade é que no tempo dos quadrinhos Norrin Rad ficou preso à Terra por 15 anos (segundo pesquisas que consegui fazer - se alguém tiver outra informação avise nos comentários). Neste encadernado a fase é predominantemente escrita por Steve Englehart e desenhada por Marshall Rogers. O arco principal do encadernado trabalha não apenas a liberdade do personagem da barreira de Galactus, mas traz também finalmente o desfecho do romance platônico entre Norrin e Shalla-Bal. Vemos importantes mudanças na personalidade do Surfista, que passa de sua tradicional melancolia e tristeza para sentimentos  mais vinculados à decepções e maturidade humana, dentre eles: raiva, ironia, cinismo... Como se finalmente Norrin saísse da adolescência emocional e migrasse agora para as várias matizes das emoções humanas. Nesse contexto, Mantis (a Madona Celestial naquela época) têm importante papel ao conduzir o ex-arauto de Galactus aos labirintos de sentimentos humanos. Como pano de fundo presenciamos ainda uma nova edição da Guerra Kree-Skrull e os planos cósmicos dos Anciões.


Cheyenne foi uma leitura incrível. Uma obra crível e que evitou diversos clichês do gênero Western sem, no entanto, deixar de trazer os elementos que o caracterizam. A Editora 85 vem fazendo um excelente trabalho editorial e de curadoria ao trazer diversos títulos excelentes do Universo Bonelliano, e Cheyenne pode ser adquirido sem medo de errar!


Chantal Montellier é uma autora muito pouco conhecida no Brasil, exceto por alguns lançamentos pela Editora Comix Zone (Social Comics e Odile e os Crocodilos). Bruxas, Minhas Irmãs saiu pela Editora Veneta em 2023 e me chamou atenção por evocar um universo muito caro à todo fã do terror clássico: Bruxas. Obviamente que Montellier tem em mente a concepção de uma obra que ultrapasse as diversas abordagens já dadas à esta entidade "bruxa". A autora na verdade busca criar uma obra que traz à luz os motivos que levam o sexo masculino a exercer, por tantos séculos, um domínio violento e cruel sobre o  feminino. Fascínio, medo e fragilização do ego masculino frente a delicadeza e encanto feminino, são os grandes disparadores das violentas ações de dominação dos homens sobre as mulheres. A rejeição e consequente incapacidade de lidar com ela é outra causa que acende a ira masculina. Assim, Montellier trafega entre passado e presente para trazer exemplos que mostram que este tipo de reação ainda está estruturada e muito presente no universo masculino. A leitura é angustiante e reveladora, e a arte é taciturna, triste e melancólica. Combinando perfeitamente com o texto da autora. Um lançamento de 2023 no Brasil que foi muito (ou nada) comentado dentro da gibisfera. Infelizmente!

Esses foram minhas leituras de destaque amigos. E as suas? O que você leu em 2024 no mundo quadrinístico e gostaria de destacar?

sábado, 30 de dezembro de 2023

Destaques 2023 - Quadrinhos


Numa espiral positiva de lançamentos, os últimos anos têm sido recheados de grandes edições. Sobretudo no âmbito das pequenas editoras que, por meio de financiamento coletivo e concebidas de fã para fã, tais edições têm capturado centenas de leitores que há muito gostariam de ver determinadas obras no Brasil. Este recorte abaixo diz respeito ao que eu li em 2023, e não necessariamente ao que foi lançado em 2023. Preparem-se para viagem!


Galo de Briga é uma obra que quero comentar positivamente, entretanto já me lamentando pelo fato da Faro Editorial (Selo Poseidon) não ter ainda confirmado a continuidade da Saga no Brasil. Trata-se de um recorte muito preciso da década de 30, onde a inocência do pré II Guerra Mundial começava a ceder lugar à uma sombria realidade. Assim é também a história, que trata do ocaso de um grande herói, o Galo de Briga, que ao lado de outros heróis que o acompanhavam, começa a ver seu mundo "mais inocente" ruir. Com personagens cativantes, uma estética Art Deco, e um excelente retrato do "espírito do tempo" do pré-guerra, Galo de Briga cativou de primeira. Nos resta torcer para que a editora traga os demais volumes.

Coney Island foi um dos primeiros lançamentos do selo LoroBuono da Editora 85. Uma editora com um excelente trabalho de curadoria dentro do universo Bonelli. Nesse caso, mais um incrível trabalho de ninguém menos que Gianfranco Manfredi (Face Oculta, Adam Wild). Aqui novamente os anos 30 em foco, mais especificamente a atmosfera de alegria e estranhezas de um dos parques mais tradicionais de Nova York, o Coney Island parque, localizado na península de mesmo nome no distrito do Brooklyn. Um lugar palco de uma enormidade de experiências emocionais e destino de uma avalanche de pessoas em busca de escapismo e oportunidades. A obra gira em torno de i) um detetive particular, ii) uma trupe de artistas liderada por um homem verdadeiramente mediúnico, iii) um ex-herói de guerra e ninguém menos que iv) Al Capone. Com um eixo central e várias subtramas, Manfredi amarra todas as pontas soltas com maestria com seu costumeiro apuro historiográfico. Assim, o autor constrói todo um pano de fundo que garante um experiência imersiva ao leitor. Um grande gol  da Editora 85! 

Gus foi um lançamento de alguns anos atrás da Editora Sesi. Dividido em 4 volumes, trata-se de uma criativa e subversiva abordagem do velho oeste americano. O protagonista Gus faz parte de um trio de foras-da-lei, entretanto, o autor, Christophe Blain, subverte o gênero ao mostrar o costumeiro e hermético universo masculino dos filmes de Bang-Bang a partir de fragilidades afetivas que todo homem possui, ainda que disfarçadas por estereótipos brucutus. A proposta é um comédia de afetos não correspondidos e aventuras amorosas truncadas, recheadas de tiroteios, assaltos e brigas de saloon. O resultado é divertido e, para mim, foi um exercício de desconstrução muito interessante do gênero. Como é um lançamento de alguns anos, recomendo àqueles que forem garimpar HQs ou, quem sabe, solicitar a republicação por alguma editora.


O Procurador é outra publicação com a assinatura de Gianfranco Manfredi a receber destaque entre minhas leituras deste ano. Lançada com o primor e cuidados tradicionais da Editora Pipoca e Nanquim, a obra é um recorte da segunda metade do século 19 nos EUA, a época tradicional dos filmes de Faroeste. Entretanto, o protagonista aqui é outro, ou seja, o exímio atirador e o centro da trama não é o pistoleiro fora-da-lei, pelo contrário, na verdade é o aparente "almofadinha" empregado das tradicionais empresas da época. A história é leve, e não tão profunda em seus nuances históricos como em outros trabalhos de Manfredi. Mas é envolvente, violenta, com pontos precisos de humor e fidedignidade ao seu tempo. Ótima leitura. Excelente HQ.


Hellnoir é outro destaque Bonelliano de 2023. Um Noir diferente, ao mesmo tempo que possui todos os elementos característicos do gênero. A diferença é que se passa no pós vida, em uma cidade (Hellnoir) que, em tudo, se parece com um purgatório. Há castas vampíricas e demoníacas de seres espirituais, policiais demoníacos corruptos e, em meio a tudo isso, almas que chegam desorientadas e são presas fáceis para todo tipo de criminosos. O protagonista é o detetive Melvin Soul que consegue manter uma estranha relação com sua filha ainda viva e ainda possui um tênue senso de justiça. Uma interessante sacada é que coisas que temos em nosso mundo e que representam conceitos espirituais, tais como, velas, incenso, água benta, são itens extremamente perigosos para todos os seres espirituais de Hellnoir, e por isso quase inexistentes naquela realidade. Uma história de terror-noir ao melhor estilo Bonelli.


Impossível descrever o que o autor Marc-Antoine Mathieu faz na história de Julius Corentin Acquefacques, protagonista de O Prisioneiro dos Sonhos. História dividida em 3 volumes atualmente publicados pela Editora Comix Zone no Brasil. Mistura de epopeia Kafkiana com elementos profundamente oníricos e simbológicos. Mathieu usa de metalinguística, quebra da 4ª parede, estruturas gráficas e até mesmo da concretude do papel no qual está impresso a história para completa-la. O resultado é uma obra modelável, fluida e que brinca com o senso de realidade do leitor. Por algum motivo que me escapa, acabei iniciando a leitura pelo volume 2 (O Processo), e não pelo volume 1 (A Origem). Mas pelo que pude depreender, a narrativa da história é tão surreal, que não há perda em fazer esta inversão. O último volume (O Começo do Fim) já foi lançado em 2023 no Brasil. Uma obra que precisa ser analisada em suas camadas de significados, e debatida em círculos de leitores. Uma experiência transcendente com um caráter circular e sutilmente opressiva. Excelente!


Vampiros da Meia-Noite foi um lançamento e uma das minhas mais agradáveis leituras do ano. A obra, lançada pela Editora Skript em parceria com a Quadriculando, é um quadrinho que reconstrói o roteiro do filme perdido London After Midnight de 1927 (Vampiros da Meia-Noite no Brasil). O filme foi perdido em um incêndio em 1967, que destruiu parte dos estúdios da MGM, e se tornou um Santo Graal para cinéfilos e estudiosos em todo mundo. London After Midnight trazia o ator das mil faces Lon Channey e o diretor Tod Browning (Drácula (1931) e Freaks (1932)), e ao que tudo indica era realmente uma obra de arte, uma vez que a adaptação para a HQ, feita por Enrique Alcatena (ilustrador) e Gonzalo Oyanedel (jornalista), descortina um roteiro criativo e original. Um roteiro, aliás, baseado no conto "The Hypnotist" do próprio diretor Tod Browning. Ao ler a obra, o leitor experimenta uma estranha sensação metalinguística, pois analisando-se retroativamente temos uma HQ baseada num filme (que foi perdido) e que, por sua vez vinha de um roteiro baseado em um conto. Além desta sensação, percebemos se tratar de algo raro, perdido, longínquo, e que tenta nos alcançar após quase 100 anos. Fascinante!!


A Trilogia Gatilho em edição completa da Editora Pipoca e Nanquim, é um faroeste na melhor concepção do gênero. Desenhada por Pedro Mauro (brasileiro que vem recebendo justo e merecido reconhecimento), a obra propicia um mergulho no velho e bom bang-bang, ao mesmo tempo que traz a sutil lembrança de obras setentistas, época em que Mauro já estava em atividade. Uma excelente leitura do ano!

Falar bem de Ken Parker é realmente uma redundância! O personagem vem sendo publicado em ordem cronológica em edições capa-dura dignas de colecionadores pela Editora Mythos. Felizmente temos a promessa de publicação de toda a saga pela editora, algo que foi feito apenas uma vez no Brasil pela Editora Cluq, entretanto de forma muito lenta e com tiragens baixíssimas. Muitos leitores falavam, em seus comentários nas redes, o quão bom era esse personagem criado por Giancarlo Berardi e ilustrado por Ivo Milazzo, baseado nisso eu tinha muita expectativa e, por isso mesmo, medo de me frustrar. Mas esse, definitivamente, não foi o caso de Ken Parker, um Western situado na primeira metade do século 19, antes da Guerra Civil norte americana. Neste número 4 temos o fechamento do primeiro grande arco do personagem. Muita ação, significado histórico e lealdade à época. Maravilhoso!

Em geral, tudo que sai do Motoqueiro Fantasma me interessa. Acho o conceito do personagem muito forte, principalmente pela ideia de representar um conceito. Quando tentaram explicar quem ele era a partir de uma perspectiva celestial/bíblica, achei que houve uma certa perda de sua estrutura dramática. Prefiro pensar nele como a encanação de um conceito, tal qual personagens como Sandman e Monstro do Pântano, ambos da DC. Trilha das Lágrimas é uma boa história. Trata-se de um voo criativo de Garth Ennis com objetivo de dar sentido diferente ao Cavaleiro Fantasma original da Marvel (teoricamente um primeiro hospedeiro para o Espírito da Vingança). A arte de Clayton Crain impressiona muito. No encaminhamento final da história tive e impressão de Ennis se perder um pouco na condução da trama, mesmo assim foi um destaque.


Depois de muito relutar em conhecer o universo de Júlia de Giancarlo Berardi (sim, o mesmo de Ken Parker) cedi aos diversos comentários favoráveis de pessoas que respeito. Não poderia ter ficado mais satisfeito. Meu aparente desinteresse pela publicação por se tratar de um formato menor, preto e branco e com uma personagem com características delicadas e frágeis desaparece completamente à medida em que Berardi nos apresenta a brutal realidade por trás das mentes criminosas. Júlia Kendall, traz o contraste perfeito entre uma aparência frágil (inspirada na atriz Audrey Hepburn) e sua vontade de entender o modus operandi da "mente criminosa" e o universo dentro do qual tais mentes operam. Berardi fez uma viagem acadêmica profunda no universo da criminologia, estudando formalmente em ambientes acadêmicos. O que lemos pela boca da Profa. Júlia (ela também uma acadêmica) são informações concretas e reais acerca da área da criminologia. Minha estreia como leitor foi, por um acaso, em uma série que traz Júlia em sua época de estudante, trata-se portanto de um prelúdio à vida adulta da personagem. Recomendo muito mesmo à todo leitor inteligente e em busca de um universo adulto, crível e cheio de mistério e reviravoltas.


Outro universo que relutei muito em entrar foi o dos quadrinhos "mudos" (sem falas). Porém, acabei dando uma chance ao suíço natural de Zurique, Thomas Ott, que com sua robusta arte baseada em hachuras conseguiu capturar-me completamente. Ler, ou melhor, acompanhar a trama de A Floresta foi uma epifania. Senti a obra me tocar numa profundidade que há muito não experimentava. Em 2023 sentei-me numa poltrona em casa, coloquei ao fundo Chopin e abri A Floresta. Como se tivesse seguido os passos corretos para um ritual secreto, minha mente literalmente explodiu. Uma sequência de imagens que gritavam para escapar das páginas para entrar em nosso in/consciente profundo. Se você já vivenciou uma perda na família, ou possui esse sentimento de ausência dentro de si, a obra é para você, pois trata disso. Depois de A Floresta estou determinado a comprar todas as obras de Ott, que recentemente teve mais uma lançada no Brasil pela DarkSide Books, O Número 73304-23-4153-6-96-8.


O longa HQ Crime e Poesia foi um achado! Um achado que muitos deveriam encontrar. A triste, reveladora e transcendente história de Matt Rizzo, um sobrevivente dos violentos bairros ítalo-americanos dos anos 1930 que, após uma malfadada experiência criminosa perde a visão. Rizzo amargaria anos e anos na prisão onde, em um ambiente hostil e completamente na escuridão, encontraria a luz a partir de Dante Alighieri. Uma história real que possui como pano de fundo uma outra história criminosa real, porém mais hedionda, que foi o crime de Leopold & Loeb em 1924. A história é narrada pelo filho de Matt, Charlie Rizzo que, por sua vez, a contou ao autor de Crime e PoesiaDavid L. Carlson. Assim, como Maus, a história de Matt Rizzo não poderia ser contada por nenhuma outra mídia a não ser mesmo os quadrinhos. A arte visceral de Landis Blair combina com o ambiente violento e ao mesmo tempo transcendente dentro do qual Matt Rizzo viveu. Uma obra maravilhosa que pode trazer aquilo que você está procurando em sua vida.


Última obra do gigante Will Eisner, O Complô - A História Secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião, trazem um trabalho denso, muito diferente de outros do autor. Eisner reconstrói a origem dos mentirosos Protocolos do título. Um conjunto de escritos que foram, e ainda o são, usados para fomentar o antissemitismo. Um documento que deu base para diversos expurgos de judeus pelo mundo. Com raízes num livro (O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu) publicado na França em 1850 pelo ativista político Maurice Joly, Os Protocolos dos Sábios do Sião tiveram sua construção a partir da Rússia czarista e atingiu centenas de nações. Em O Complô, Eisner consegue de forma genial reconstruir a história deste odioso documento e lança luz nas sementes de ódio sempre prontas para eclodirem, bastando um documento, sendo ele falso ou não.


Não me canso de me surpreender com a Coleção Tex Gold da Editora Salvat. Aliás, a surpresa é maior com Tex, o ranger Bonelliano que infelizmente demorei demais para conhecer. Em O Vale do Terror (La Valle del Terrrore), edição Nº 26 da coleção, Cláudio Nizzi mostra que é realmente um dos grandes roteirista do personagem. A história é o último trabalho do desenhista, também italiano, Roberto Raviola (conhecido como Magnus). Envolvente e graficamente belo, a obra coloca Tex e seu parceiro Kit Carson em um microcosmo familiar cheio de drama e mágoas. Ótima leitura e com certeza destaque.


O ano se fecha novamente com ele, Gianfranco Manfredi, com seu personagem Adam Wild, mistura de explorador e libertador. Um personagem solidamente construído a partir de figuras reais, como o explorador David Livingstone, primeiro europeu a percorrer toda a África Negra. Com uma construção histórica sólida e fiel à realidade vivida pelas tribos africanas assoladas pelos caçadores e mercadores de escravos na segunda metade do século 19, Adam Wild é fascinante. É impossível não relacionar a obra à outra a pérola da literatura universal que é O Coração das Trevas, do polonês Joseph Conrad. Fruto das experiências vividas por Conrad no coração da selva africana, O Coração das Trevas é um atestado da crueldade, violência e loucura humanas, tendo sido adaptado por Francis Ford Coppola em 1979 em seu Apocalypse Now. Adam Wild é um exemplo de literatura Pulp da melhor qualidade com fortes raízes na realidade histórica. 

Estes foram meus destaques dentre minhas leituras de quadrinhos em 2023. Quais foram as suas? Se quiser deixe nos comentários!

sábado, 31 de dezembro de 2022

Viagem Literária - 2022


Iniciei o ano de 2022 ainda sob o efeito literário do natal de 2021. Estava lendo a excelente antologia O Natal dos Fantasmas. Ainda sob a forte influência do livro resolvi continuar com a literatura Vitoriana e Eduardiana com o livro Terror Depois da Ceia. Maravilhado com esse universo recém descoberto mergulhei nos Contos Clássicos de Fantasmas, trazendo o mesmo recorte de obras do final do século XIX início do século XX. Finalizado este ciclo de livros, finalmente fui procurar material sobre uma atriz pela qual sou muito interessado, Norma Bengell, e nessa busca achei o excelente livro de memórias que traz como título o nome da atriz. Voltando-me para outro universo que muito me interessa mergulhei em dois livros sobre quadrinhos, um chamado O Incrível Steve Ditko e Heróis Pulp. Talvez por ter lido um excelente livro há alguns anos atrás dentro da Coleção Clássicos de Ouro da Editora Nova Fronteira resolvi ler outro livro desta coleção, O Filho do Homem. No dois últimos meses do ano fiz duas grandes descobertas, Contos de Afonso Arinos e O Escravo de Capela. E por fim, concluí minha odisseia literária de 2022 com Pequenos Contos de Grande Mestres do Terror.


O livro O Natal dos Fantasmas faz parte do catálogo de uma editora que precisa ser conhecida, a Editora Wish. Especializada em trazer obras clássicas e recortes literários obscuros de grandes nomes da literatura, a editora trouxe este excelente livro sobre uma época que, em geral, traz à tona memórias e experiências muito profundas: O Natal. O livro tem um acabamento maravilhoso e nos apresenta contos sobrenaturais por vezes singelos, outras vezes cômicos, e até mesmo trágicos sempre envolvendo o Natal. Quando li este livro minha cabeça explodiu para um universo até então escondido para mim, a saber, as obras clássicas da virada do século XIX para o XX. Verdadeiros tesouros que trazem pérolas escondidas. O Brasil vê florescer, felizmente, inúmeras iniciativas de editoras menores trazendo obras deste tipo.  

Tão empolgado que fiquei com o livro que acabara de ler que logo comprei outro título do catálogo da Editora Wish: Terror Depois de Ceia. Trata-se de uma antologia de contos de Jerome K. Jerome, escritor conhecido na virada do século XX por sua veia cômica e por vezes sarcástica. Meu interesse foi em me aprofundar na literatura desta época e a leitura foi uma grata surpresa por ser emoldurada por desenhos de um famoso ilustrador da época, Kenneth M. Skeaping. A ilustrações de Skeaping me transportaram diretamente para um universo imaginário, mágico e ao mesmo tempo assustador pelo qual naveguei quando era garoto e folheava antigos livros de contos com desenhos alegres e ao mesmo tempo macabros. Maravilhosa leitura.

Assim como a Editora Wish, outras duas editoras, a Clepsidra e a Ex-Machina, tem nos presenteado com obras clássicas. Minha primeira incursão pelo catálogo de ambas foi com o lançamento conjunto do livro Contos Clássicos de Fantasmas. A obra traz uma antologia fantástica de autores do período de tempo já supracitado (virada do século XIX para o XX). Só tenho elogios para a qualidade dos contos que me transportaram com toda força para temores e terrores primais de todos. Terrores que ainda espreitam a todos a despeito da falsa segurança das nossos dispositivos tecnológicos atuais. O livro conta com a maravilhosa introdução do Prof. Alexander Meireles da Silva (conhecido pelo canal Fantasticursos). Foi por meio de Contos Clássicos de Fantasmas que tive o prazer de conhecer um autor pelo qual fiquei totalmente admirado, Afonso Arinos. Isso me motivou a buscar outra obra deste autor e que aparecerá logo abaixo como grande destaque de 2022 para mim.

Norma Bengell sempre habitou meu imaginário assim como o fez com o imaginário de presidentes brasileiros, autoridades e a maioria dos homens das décadas de 70. Pouco conhecida do público em geral, mas com uma carreira de sucesso na Europa, sempre me perguntei de onde tinha saído esta estrela que brilhou de forma incandescente desde os anos 50 e foi prova viva das diversas mudanças políticas e culturais do Brasil. Finalmente esse ano de 2022 encontrei este livro da Editora nVersos que na verdade compila as memórias escritas pela própria Norma em seu diário pessoal. Fruto de um resgate hercúleo da produtora Christina Caneca, o livro é extremamente gostoso de ser lido. Norma escreve de si para si. Uma leitura que teria que ser obrigatória para todos que tem o mínimo interesse pela história cultural de nosso país, só que nesse caso vista pelas lentes honestas, singelas, indomáveis e femininas desta grande atriz. Maravilhoso esse livro.

Personalidade complexa, irascível e de difícil trato foi Steve Ditko, co-criador do Homem-Aranha. Um homem que em função de sua reclusão e fortes posições ideológicas suscitou mitos e até lendas ao redor de si. No livro O Incrível Steve Ditko, o jornalista Roberto Guedes volta a entregar um material que, assim como havia feito com Jack Kirby, traz a vida, as vicissitudes profissionais e a forma de pensar deste que foi um grande artista da 9ª Arte. Embora esteja muito associado à criação do Cabeça de Teia, Ditko criou diversos outros personagens que sintetizavam a filosofia da qual ele era adepto, o Objetivismo de Ayn Rand. Um livro ágil, honesto tanto com o gênio quanto com a personalidade difícil do quadrinista. Cheio de ilustrações que contextualizam a obra de Ditko o livro precisa figurar na estante de leitores e amantes dos quadrinhos.

Heróis Pulp foi uma obra da Editora Skript que aguardei ansiosamente. Um livro que traz os bastidores da criação e a descrição da essência de 11 dos maiores personagens da literatura Pulp (revistas precursoras das modernas HQs). Tarzan, John Carter, Zorro, Buck Rogers, Hugo Danner, O Sombra, Doc Savage, O Aranha, O Besouro Verde, Olga Mesmer e o O Morcego Negro são destrinchados de com a excelência acadêmica necessária e uma acessibilidade textual inclusiva. O leitor se maravilhará ao conhecer os pilares narrativos sobre os quais a arte sequencial se formou. Além dos personagens mencionados acima, o livro ainda traz outros 3 personagens que existiram tanto nos Pulps quanto no quadrinhos, caracterizando-se como "personagens de transição": O Fantasma, Flash Gordon e Mandrake. Um livro que também precisa figurar na estante dos leitores!

Mudando radicalmente o mote da leitura, li o livro O Filho do Homem do laureado pelo prêmio Nobel de literatura de 1952, François Mauriac. Embora cristão declarado, François não foi um homem que escreveu sobre Cristo do ponto de vista panfletário ou proselitista. De autores deste tipo eu quero distância. François te experiências tanto na 1ª quanto na 2ª Guerras Mundiais. Era um homem com um conhecimento muito claro da maldade humana. Portanto, sem a possibilidade de abordar sua fé a partir dos tradicionais chavões religiosos. O autor busca refletir aqui sobre as atitudes de Jesus e o que verdadeiramente o movia. Conheci o livro porque tenho tido muito interesse por esta Coleção da Editora Nova Fronteira (Coleção Clássicos de Ouro). Foi por meio dela que conheci um dos maiores e melhores livros que já li: O Deserto dos Tártaros. Portanto, os títulos aqui presentes sempre me chamam muito a atenção.

Meu grande achado de 2022 foi conhecer as obra de Afonso Arinos (1868-1916). O caminho que trilhei até me interessar pela obra do autor foi iniciado nas publicações da Editora Wish e Clepsidra (conforme mencionei mais acima). O livro Contos - Afonso Arinos é uma antologia estruturada pela Profa. Walnice Nogueira Galvão (Profa Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). Arinos me maravilhou ao apresentar um Brasil original, cheio de histórias fantásticas. A capacidade descritiva do autor é excepcionalmente envolvente, proporcionando ao leitor uma imersão profunda em uma universo mágico e crível. Os contos aqui apresentados são de um teor literário excepcional. O livro me motivou a buscar mais autores desta época. Recomendo muito a leitura!!

Inspirado talvez pelo universo mágico, brutal e ao mesmo tempo hipnótico brasileiro, chamou-me a atenção o livro do brasileiro Marcos DeBrito, O Escravo de Capela. Surpreendi-me muito (positivamente) com o relato visceral da escravidão vivida em nosso país. A história se passa em uma fazenda de açúcar em 1792. DeBrito, baseado em registros históricos, conta a história de um homem trazido como escravo da África e que estaria marcado para protagonizar a origem de uma das nossas mais famosas lendas envolvendo um preto de uma perna só com seu tradicional capuz vermelho. A leitura é extremamente fluida e crua ao mostrar sem rodeios a brutalidade na fazenda. DeBrito prende a atenção do leitor e o aproxima muito dos cenários tradicionalmente brasileiros. O horror tem seu lugar na medida certa e a história possui um final que amarra todas as pontas da narrativa. Esta foi outra agradável descoberta de 2022!!!

Ainda hipnotizado pela literatura da virada século XIX para o século XX tirei da pilha de leitura a pequena pérola Pequenos Contos de Grande Mestres do Terror da Editora Skript. Uma antologia de contos de autores tradicionalmente lembrados em materiais assim, tais como Poe, Lovecraft, Shelley. Autores que sabemos que são satisfação garantida de leitura. Mas este livro vai além ao trazer contos de autores desconhecidos para mim que me tocaram tão ou mais profundamente que os supracitados. Vou citar um deles, a brasileira Julia Lopes, que com seu conto Os Porcos (1903) me proporcionou, em apenas 4 páginas, o relato mais profundo e visceral acerca da maravilhosa experiência de se dar a luz. Além da mais profunda experiência acerca do machismo, misoginia e violência contra a mulher. Uma verdadeira pérola literária tendo como protagonista a pequena gestante Umbelina. A introdução da obra é do competente e já citado aqui, Alexander Meireles da Silva.

Por fim, qual foi a sua viagem literária em 2022? Desejo a todos um excelente 2023!!

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Destaques 2022 - Quadrinhos


Findando o ano é hora de resgatar e apontar minhas melhores leituras de 2022 dentro da 9ª Arte. Como nos outros anos, meus apontamentos e destaques não serão necessariamente para as HQs lançadas no decurso do ano vigente. Mas sim, simplesmente para aquelas que li em 2022. Por isso não estranhe HQs até antigas figurarem nesse extrato. A ordem das obras abaixo também não obedece a critérios de qualidade, mas sim uma simples ordem cronológica de leitura. Dito isso vamos à elas.


Estranhas Aventuras provavelmente figura no ranking de melhores leituras dos últimos dois anos para muitos leitores. Lançada no Brasil em dois encadernados pela Panini em 2021, a obra traz aquilo que o roteirista Tom King sabe fazer melhor, ou seja, escrever personagens fora de suas cronologias trazendo abordagens pouco convencionais. Foi assim com o Senhor Milagre e o Visão. Embora um personagem obscuro para muitos, o explorador Adam Strange é o centro desta obra que disseca importantes perguntas acerca de lealdade, traições e o questionamento acerca de até onde estaríamos dispostos a ir por aqueles que amamos e os custos envolvidos. Obra que consolida a excelente parceria de King com o artista Mitch Gerads.


O que poderia parecer uma HQ voltada para o público adolescente subverte completamente esta ideia ao apresentar com toda crueza o dia a dia de uma comunidade satanista. Embora a personagem central (Sabrina) seja adolescente, o contexto que a cerca é completamente adulto e possivelmente real. A leitura de O Mundo Sombrio de Sabrina faz frente às melhores histórias arcanas da antiga Vertigo e aprofunda mais ainda o submundo da magia. A série do NetFlix, baseada na obra, é boa mas não chega a cruzar certos limites que a HQ facilmente cruza. Pena que a Editora Geektopia trouxe apenas dois encadernados desta obra que tem o excelente roteirista Roberto Aguirre-Sacasa. O grande destaque da história é sabermos que o que é relatado ali acerca de cultos e comunidades satanistas é, possivelmente, tudo verdade!!


Quem acompanha o Blog já percebeu o quanto gosto da epopeia europeia Storm. Lançada de forma incompleta em 1989 pela Editora Abril, a obra voltou ao Brasil em 2021 com o lançamento de Storm Integral Vol. 01 pela estreante Editora Tundra. Só a soberba arte de Don Lawrence já seria atrativo suficiente para se ter o material. Porém, a história avança por terrenos literários como Space Opera, Distopia, Weird Fiction entre outros, e o faz de forma muito competente. Em 2022 tivemos o lançamento do vol. 02 e para 2023 já temos a campanha da Editora no Catarse para o vol. 03. Storm é uma obra que, sem o menor medo de errar, é uma das maiores HQs de todos os tempos em minha opinião. 


Um dos grandes achados nos últimos anos para mim foi a Editora Bonelli. Ainda que a tenha conhecido tardiamente, eu cheguei com sorte ao ver diversos títulos serem lançados por uma grande variedade de editoras brasileiras. Um deles é Morgan Lost. Um título no qual o protagonista que dá nome à obra vive em um universo que claramente não é o nosso, muito embora as semelhanças sejam enormes. Morgan Lost vive em um universo distopico que muito lembra a estética Art Deco e Noir dos anos 30 e 40, ao mesmo tempo em que tecnologias atuais são mescladas a este ambiente retrô. Isso cria no leitor uma sensação de anacronismo misturado com uma forte estética dark. Morgan é um detetive que, ao melhor estilo Noir, enfrenta assassinos que parecem saídos diretamente do livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess. Embora a Editora 85 já esteja no lançamento do 4º volume, apenas em 2022 pude ler o primeiro deles que figura acima.


Outro lançamento de 2021 que fui ler apenas em 2022 foi As Aventuras de Sherlock Holmes, um lançamento muito pouco comentado da Editora Mythos (infelizmente), mas que é excepcional. Trata-se da adaptação muito fiel dos primeiros contos originais de Sherlock Holmes. Esta adaptação, ao cargo de Giancarlo Berardi (criador de Ken Parker) e do desenhista Giorgio Trevisan, foi produzida na década de 80 por ocasião do centenário da criação máxima de Sir Arthur Conan Doyle. A fenomenal arte de Trevisan capturou totalmente a atmosfera Londrina da Era do Gaslight. Afora isso, a adaptação de Berardi mostra um lado menos infalível do maior detetive de Londres, e isso não vem dele, vem (pasmem) da própria concepção original de Doyle!


Acredito que eu não seja o único a desconhecer os trabalhos iniciais do grande desenhista Frank Frazetta. Conhecido por suas fenomenais artes relacionadas ao mundo da "Espada e Feitiçaria", Frazetta teve uma carreira de desenhista em uma arte sequencial mais tradicional, como é apresentado aqui nesse compilado completo de sua trajetória junto ao personagem Dran Brand. Para muitos a obra Dan Brand e Outras Histórias pode parecer se desviar para o roteiro mais simples, e talvez realmente seja assim, mas justamente por isso a obra cresce ao descortinar um entretenimento no qual a preocupação com uma história intrincada e profunda não existe. Existe apenas a vontade de se trazer uma aventura legítima e honesta. A edição da Editora Pipoca e Nanquim possui, como de costume, acabamento excelente e extras incríveis que transcendem o personagem Dan Brand. Temos peças publicitarias desenhadas por Frazetta de um inestimável valor histórico para 9ª Arte. Uma edição que o leitor, se souber aproveitar, se deliciará.


A Morte Viva é uma adaptação do livro homônimo de 1958 do autor francês de ficção científica Stefan Wul. A história é suficientemente obscura e hermética para se criar a atmosfera perfeita para o terror fantástico. A adaptação é de Olivier Vatine e a arte, simplesmente excepcional, é do português Alberto Varanda. Uma obra de excelente acabamento pelo selo Gold Edition da Editora Mythos. Questões como os limites da ciência, a dor de uma perda, o enfretamento do desconhecido estão fortemente presentes e em nada envelheceram desde a época em que a história foi publicada em livro. Fiquei muito curioso em conhecer outras obras de Wul.


Muito celebrada entre os fãs dos Vingadores, A Saga de Korvac envolve nomes de peso da indústria dos quadrinhos, dentre eles George Perez (falecido recentemente em maio de 2022), Sal Buscema, Bill Mantlo, David Michelinie entre outros. Esses artistas simplesmente ajudaram a moldar a Era de Bronze dos Quadrinhos e fizeram história. A Saga possui vários adjetivos positivos por fornecer excelente simbiose entre arte e roteiro. Nela os Vingadores em sua formação setentista se vê às voltas com um estranho vilão (Michael Korvac) que na verdade possui raízes mais misteriosas no futuro, e esse é o motivo do envolvimento da formação futurista e clássica dos Guardiões da Galáxia (Charlie-27, Martinex, Nikki, Yondu e Major Vance Astro, Geena Drake e Águia Estelar). Realmente um trabalho que nos faz lembrar como um quadrinho pode ser interessante e envolvente. Há diversos momentos emblemáticos na obra, e um deles mostra Thor entrando em uma igreja Cristã acompanhado dos Vingadores e emitindo sua opinião sobre o Deus ali representado. Clássico dos clássicos.


Com o lançamento da adaptação de Sandman na NetFlix em 2022, resolvi reler os primeiros arcos  originais presentes nesse encadernado definitivo do Rei do Sonhar. Torna-se incontestável o fato de que a obra, apesar de seus 33 anos, ainda continua relevante, profunda, enigmática e incrível. O encadernado traz exatamente os arcos adaptados na primeira temporada do streaming. Reler Sandman torna sua citação obrigatória entre as melhores leituras de qualquer ano. O seriado entregou uma obra com algumas mudanças em relação ao original, que não chegaram e comprometer o DNA da obra (pelo menos em minha opinião). No entanto, fica muito claro para mim o quanto a versão original dos quadrinhos é realmente melhor. Nos quadrinhos temos determinados recursos narrativos impossíveis de serem adaptados, e isso é mais que motivo para dizer que o quadrinho continua melhor, ou seja, mais profundo, mais visceral, mais lírico, poético e dark.


5 Por Infinito foi um quadrinho lançado pela Editora Pipoca e Nanquim em 2018. Os elogios feitos a ela nas diversas mídias à época de seu lançamento, sobretudo pela arte de Esteban Maroto, não são exagerados. Maroto é realmente um gênio artístico ao fornecer densidade à desenhos usando poucas linhas e o uso racional do preto e branco. É incrível a solidez ou a fluidez que ele consegue fornecer à uma página. Por ter sido escrita ao longo de um espaço de tempo amplo, podemos ver a arte de Maroto evoluir ao longo do encadernado. Um volume único no mundo por trazer todas as histórias do grupo (sim, 5 por Infinito é um grupo de exploradores) e ainda a derradeira delas, que foi escrita anos depois fechando um longo ciclo exploratório espacial. Tudo muito bem amarrado. 5 Por Infinito mistura diversos gêneros da literatura fantástica tendo como linha principal a ficção científica e, dentro deste gênero, os designs concebidos por Maroto são simplesmente incríveis: naves, estações, laboratórios, roupas, mobília... Uma mistura de arte retrô com os lisérgicos e psicodélicos conceitos dos anos 70. Tudo maravilhoso.


Fechando o ano de 2022, gostaria de falar de O Perfeito Estranho. Quando vi esse material ser lançado pela Editora Veneta em 2017, logo pensei... "Esse material é quente!" (mesmo sem saber do que se tratava exatamente). Demorou um pouco para eu adquiri-lo, e mais um tempo ainda para eu lê-lo. Trata-se da obra quadrinística completa de um artista pouco conhecido, Bernie Krigstein. Alguém que eu também não conhecia mas que teve uma célebre passagem pelos quadrinhos da EC Comics nos anos 50. Bernie foi uma das vítima do Authority Code americano, que forçou os quadrinhos a se tornarem mais infantis naquela época. Com uma sólida formação acadêmica, Bernie era também pintor, e com isso trouxe para os comics toda sua bagagem artística diferenciada. O encadernado da Veneta traz uma introdução maravilhosa que nos mostra quem foi o artista e o quanto sua trajetória foi minada, contra sua vontade, até fazê-lo desistir da 9ª Arte. Um exemplo de alguém talentosíssimo e que surgiu em um momento completamente desfavorável para que seu talento fosse aproveitado nos quadrinhos. Uma pena... Sobrou sua profícua passagem pela EC que a Veneta fez o favor de nos presentear com esse volume.

É isso aí amigos... E você? Quais HQs leu e gostaria de elogiar?

Coloque aqui nos comentários. Forte abraço!

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