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sábado, 26 de março de 2022

Pílula Gráfica #17: O Mundo Sombrio de Sabrina - (2019...)


Qual a chance de alguém como eu, leitor de quadrinhos há mais de 30 anos, se interessar por um quadrinho aparentemente voltado para o público adolescente? Considerando o pouco tempo para leitura que tenho disponível, e a minha pilha de gibis comprados que não para de crescer... eu diria que as chances de eu parar para ler O Mundo Sombrio de Sabrina seria igual à ZERO. Mas eis que cruzou comigo um vídeo no qual o apresentador classificava a obra como "Terror Cristão". Só isso já me chamou a atenção, sobretudo considerando a confiança que tenho no gosto deste colega. Qual não foi minha surpresa pela qualidade da obra lançada no Brasil pela Editora GeekTopia! Com apenas dois volumes lançados por aqui, a obra conta a história de Sabrina Spellman, filha de uma humana com um Bruxo com grandes poderes e aspirações. Embora tenha estreado em 1962 na revista Archie´s Madhouse (Archie Comics), a personagem Sabrina teve algumas versões ao longo das décadas, desfrutando certo sucesso em todas elas. A última encarnação da Bruxinha nas telas havia sido em um seriado televisivo de 1996, chamado no Brasil de Sabrina, A Aprendiz de Feiticeira, trazendo a atriz Paula Hart no papel de Sabrina. Mas o que diferencia o quadrinho O Mundo Sombrio de Sabrina de Roberto Aguirre-Sacasa (roteiro) e Robert Hack (arte) das outras versões é a entrada profunda e sem censura no mundo obscuro da magia negra e satanismo. Se em outras versões de bruxinhas para as telas (caso também de A Feiticeira com Elizabeth Montgomery entre 1964 e 1972) e gibis, as histórias eram carregadas de humor e devaneios adolescentes ou matrimoniais, aqui isso fica para trás. A ponto de chegarmos a esquecer que estamos lidando com o universo adolescente, uma vez que o cenário de terror e horror apresentado é crível e terrível. Outro fator que chama atenção á o fato de sabermos que muito possivelmente realmente existirem os chamados "Covens", irmandades de satanistas que, assim como foi mostrado em o Bebê de Rosemary de Roman Polanski, podem do nosso lado sem nem sabermos. Para o leitor mais experiente existem diversas surpresas ao longo do roteiro, como por exemplo a participação especial do Bruxo (real) Aliester Crowley e o pai de Sabrina ser desenhado (quando criança) à semelhança do pequeno menino lobisomen interpretado pelo ator-mirim Butch Patrick na série televisiva Os Monstros (1964-1966). Há vários outros easter-eggs muito interessantes na obra. A notícia ruim é que o último volume publicado no Brasil pela GeekTopia (o volume 2) saiu em 2019, ou seja, estamos há quase 3 anos sem um novo lançamento. Até o momento do fechamento desta matéria não tive resposta da Editora se a continuidade da série está garantida por aqui. Mas para aqueles que se interessaram pela obra, uma versão no NetFlix estreou em 2018 e já conta com 4 temporadas. Sendo assim, você poderia acompanhar a história pelo Streaming, algo que ainda não consegui fazer. De qualquer modo fica a dica à GeekTopia para continuar lançando este quadrinho extremamente interessante e ousado!




Sabrina - A Aprendiz de Feiticeira. Série de 1996.

O Mundo Sombrio de Sabrina - NetFlix - 4 Temporadas

sexta-feira, 18 de março de 2022

The Batman (2022)


Depois de uma longa espera, muitas críticas voltadas ao ator que protagonizaria o Homem-Morcego nas telas e tantos outros contratempos relacionados à pandemia pelo novo coronavírus, finalmente The Batman viu a luz do dia. Ir ao cinema assistir um filme do Batman é sempre um misto de ansiedade, excitação e cautela. Para mim, já vou dizer logo, a experiência superou positivamente em muito minhas expectativas iniciais. Em geral, uma obra conversa muito conosco quando ela consegue dialogar com o mundo ao nosso redor, com o "Espírito do Tempo" (Zeitgeist). Foi assim com Coringa de 2019 com Joaquin Phoenix, e agora novamente com essa nova versão do Cavaleiro das Trevas e Matt Reeves. Vejamos um pouco porque The Batman conseguiu ir fundo na difícil tarefa de espelhar nossos medos e inconsistências.



Minha primeira análise vai para a personalidade, ainda que em construção, do personagem principal (Batman/Bruce Wayne). Um homem que entende sua missão mais como uma trajetória de vingança do que como uma busca legítima por justiça e defesa do mais fraco. E nesse processo, o único ponto de mutação capaz de retira-lo da espiral de violência e auto-mutilação emocional foi se ver confrontado com alguém muito parecido com ele, no caso, O Charada, interpretado de forma muito crível e excelente pelo ator Paul Dano. É nessa confrontação que Bruce consegue se ver como que através de um espelho, passando a estabelecer um diálogo interior consigo mesmo, uma clara referência à HQ Batman - Ego. O ator Robert Pattinson entendeu muito bem o personagem, embora tenha se distanciado do Bruce Wayne tradicional (playboy). Mas há uma explicação para isso em minha opinião. Para o Bruce Wayne de Pattinson, enquanto ele não se encontrasse consigo mesmo (algo que ocorre ao longo filme), jamais ele conseguiria interpretar um papel como o de um playboy perante a sociedade.



É nessa perspectiva de viagem interior e enfrentamento de si mesmo que Bruce Wayne se vê orbitado  por pessoas que são reflexos de sua própria orfandade, caso de Selina Kyle (Zoë Kravitz, a Mulher-Gato) e o Charada. Toda essa consistência dramática individual em cada personagem faz com que a violência seja muito bem contextualizada como reflexo dos ambientes interiores de cada personagem. Enquanto as motivações do Charada se relacionam em 100% com sua história pessoal, sem nenhuma motivação financeira aparente, outros vilões aparecem representando a corrupção e ganância que permeiam a cidade de Gotham City, caso do Pinguim (interpretado de forma irreconhecível pelo ator Colin Farrell) e Carmine Falcone (John Turturro). Mas para além das interpretações e narrativas pessoais, há outros 2 grandes elementos que fizeram, em minha opinião, o filme ascender à um status cult. A ambientação de Gotham City e a trilha sonora.



Gotham aparece de forma extremamente bem representada ao manter um clima cinzento, chuvoso e sujo quase que em sua totalidade. Foi impossível não associa-la em alguns momentos à metrópole do filme Blade Runner (1982) de Ridley Scott. Sem deixar de ser tecnológica e condizente com nosso tempo, as características da Gotham de The Batman, permitiram que ela se aproximasse de forma muito crível com o clima Noir tão característico dos filmes detetivescos dos anos 30 e 40. Esse clima é acompanhado de forma muito intensa por uma associação muito peculiar, a música clássica representada por Ave Maria e a música "quase" fúnebre do NiorvanaSomething In The Way. A amarração destes conceitos musicais foi feita com maestria por Michael Giacchino, veterano de outras trabalhos famosos. Eu diria que o núcleo musical principal do filme, formado pelos acordes iniciais de Something In The Way batem fundo e amplificam a dor sentida por Bruce Wayne.



Por fim, algo que me trouxe uma genuína e profunda inquietação ao analisar o filme, foi a excelente exposição que ele faz do "caldo" social que vem sendo cozinhado por décadas. Um caldo de exclusão, exaustão social e pessoal. Quando temos esse "caldo" cozinhado por tempo suficiente é fácil algumas pessoas se identificarem com a barbárie, com a ruptura social plena e total. No filme essa ruptura é vista a partir das inúmeras pessoas que se identificam com a missão de dor e vingança implementada pelo Charada. Nessa missão as pessoa identificam a possibilidade de se revoltarem contra tudo e contra todos frente a dor a que sempre foram submetidas. Para mim esse é o aspecto mais "ASSUSTADOR" do filme, ou seja, revelar um possível caminho de barbárie e auto aniquilação caso não optemos pelo coletivo, caso não entendamos que meu espaço de existência deve considerar constantemente a existência do outro.



Um filme que constrói um Batman contemporâneo e sintonizado com nosso tempo.

terça-feira, 1 de março de 2022

STORM - Integral Vol. 01 - Porque gosto tanto desta obra?!?!


Entre 1989 e 1990 saiu aqui no Brasil uma HQ que definitivamente explodiu minha cabeça. Lançada em Terras Brazucas pela Editora Abril, Storm é uma obra que traz a junção de um ilustrador fantástico, Don Lawrence, com dois editores Holandeses de talento, Frits van der Heide e Martin Lodewijk. Responsáveis pelo lançamento original da saga a partir da segunda metade dos anos 70, esse trio fez história. Infelizmente apenas os 10 primeiros capítulos da saga Storm viram a luz do dia em território Brasileiro. Sonhei com o retorno da saga por esses longos 33 anos. Ano passado, no entanto, a Editora Tundra anunciou o ousado projeto de trazer novamente a obra para o Brasil. MAS PORQUE GOSTO TANTO DE STORM!!!????



Durante muito tempo me debrucei sobre essa questão e a resposta para ela é muito significativa para mim. E vou dizer porque. Diversas obras de ficção científica no passado conseguiram capturar o assombro e o temor pelo desconhecido. Temas como Cenários e civilizações ancestrais que existiram e deixaram de existir... Modelos culturais que cresceram e se apagaram... sempre foram estruturas narrativas corriqueiras no gênero da ficção científica. Porém, tais enredos são difíceis de serem adaptados ou escritos de maneira a despertar VERDADEIRAMENTE o assombro ancestral ou medo verdadeiro pelo desconhecido. Em geral, muitas obras constroem tramas que, embora "legais", acabam por nos levar a espaços interpretativos conhecidos da psiquê humana. São roteiros que acabam por "domar" o desconhecido ao explicar tudo dentro de concepções já existentes. E com isso, se esvai o assombro e a perplexidade perante o vazio, o profundo e o infinito. Já me deparei com obras, no entanto, que realmente me fizeram entrar em contato com a tenebrosa e impensável existência infinita do tempo.


Posso citar, por exemplo a maioria dos episódios da Série Clássica de Star Trek, que lidavam com espécies e lugares inconcebíveis. Infelizmente, para mim, com a estruturação do Universo de Star Trek dentro de concepções políticas e sociais humanas, algum brilho foi perdido, embora eu ainda seja fã. A estranheza foi domada pela Federação Unida de Planetas, e todo o Universo conhecido passou a funcionar como uma imensa estrutura sócio-política humana. Embora existam episódios memoráveis dentro das sequências posteriores da série clássica, o medo do insondável, da vastidão do espaço começou a ser domado. Assim também o é com excelentes séries como Star Wars. Apesar do seu rico universo dramático, a verdade é que a franquia funciona dentro de um cosmos de concepções e estruturas humanas. Não importa, por exemplo, a estranheza da espécie ou da criatura apresentada nos filmes, ela sempre agirá a partir de comportamentos relativamente humanos.


Em oposição à isso há verdadeiras maravilhas da ficção científica que conseguem colocar a estrutura de pensamento humano apenas como parte de um todo, apenas como uma fração do desconhecido. Estão nessa lista Fundação de Isaac Asimov, Duna de Frank Herbert, A Mão Esquerda de Escuridão de Ursula K. LeGuin, O Planeta dos Macacos de Pierre Boulle, tão maravilhosamente transposto para as telas em 1968. E essa sensação de contato com o que é estranho, desconhecido, perigoso e, ao mesmo tempo, maravilhoso e épico, está presente em STORM. O artista Don Lawrence conseguiu captar com suas ilustrações (verdadeiras obras de arte) a ideia do que é fora dos padrões. Você encontrará na obra similaridades sociais, políticas e espirituais com a sociedade humana, mas é uma semelhanças estranha, "fora do lugar", decaída...


Fora isso, há uma profunda identificação com o personagem Storm, o astronauta que se vê lançado em um mundo que parece a Terra, mas ao mesmo tempo não parece. A linha narrativa é totalmente comprometida com a "aventura", mas que deixa "migalhas" acerca do comportamento humano. Um desfile de coisas estranhas são apresentadas ao leitor que, embora reconheça comportamentos humanos nas mais variadas criaturas, logo vê que o que é conhecido e palatável à nós é apenas uma fração do todo. A edição da Editora Tundra é excelente por diversos motivos, dentre eles pelo tamanho, que permite as ilustrações de Lawrence ganharem a dimensão e a força que merecem. Os extras trazem informações riquíssimas acerca dos bastidores da criação da obra. Informações sobre as quais eu nem tinha ideia. Se você está chegando agora e não conhece Storm eu o convido a conhecer. Mais que isso, eu o convido a ler a obra e admira-la a partir de uma desistência de concepções humanas. Tente parar de explicar tudo o que vê a partir de construtos mentais humanos. Caso consiga fazer isso, STORM crescerá ainda mais e poderá, inclusive, leva-lo a sentir a estranheza e o desconforto frente ao desconhecido.

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