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terça-feira, 1 de julho de 2025

Viagem Literária - 2024


Quais lugares você visitou em 2024 através dos livros que leu? Já pensou em descrever essas experiências mentais como se fosse uma viagem? Livros oferecem esta dádiva ao nos presentear com viagens pelo tempo e espaço. Mais que itens que se acumulam na estante, livros transcendem a prerrogativa de "coisas" adquiridas, por isso, lidos ou não, do alto da estante eles nos observam pacientemente com seus portais a serem abertos e descobertos. Esta foi minha viagem em 2024.


Graças ao cenário editorial dos últimos anos no Brasil, o resgate histórico de quadrinhos maravilhosos e esquecidos, bem como a trajetória de importantes artistas, passaram a ter seus registros restaurados e preservados. Rodolfo Zalla - O Sentido de Tudo é um livro incrível do jornalista Gonçalo Júnior que resgata a história do Mestre do Desenho Rodolfo Zalla, desenhista argentino que fez carreira no Brasil. Gonçalo descreve a trilha artística de Zalla com acurácia histórica mas, sobretudo, com o carinho, respeito e honestidade que só um fã da 9ª Arte pode dar. A leitura passa pelos primeiros anos de Zalla e os motivos que o levaram a emigrar para o Brasil. Entretanto, a grande descoberta ao ler o livro é a constatação da incrível pessoa que o desenhista era e os diversos personagens com os quais ele trabalhou. Impossível separar o legado do artista da história das Histórias em Quadrinhos no Brasil. Um livro imperdível para qualquer pessoa que minimamente gosta de quadrinhos e tem sensibilidade suficiente para olhar para as mãos e mentes por trás desta arte que tanto amamos.


Coelho Neto (1864-1934) foi um escritor, político e professor brasileiro membro da Acadêmica Brasileira de Letras. Em função da excelente curadoria de Editoras como Clepsidra, Melusine Press e O Grifo Editora, Neto tem sido redescoberto por um público que, embora pequeno, mostra-se fiel. Dono de uma prosa encantadora e envolvente, Coelho Neto tem algumas obras que não viam a luz há mais de 100 anos. Verdadeiras pérolas da literatura fantástica brasileira. O livro Melusina e Outros Contos Fantásticos (Editora Melusine Press) reúne contos originais publicados pela Editora Garnier (na França e no Brasil) no início do século XX. Entrar em contato com estes contos não se trata apenas de resgate histórico, ou puramente um deleite  intelectual egocêntrico para satisfazer a vaidade literária de um caprichoso leitor, é entrar em um ambiente cheio de pérolas escondidas e ser transposto para uma realidade palpável, caprichosa, extravagante e fora do comum.


Antes de saber que A Trilogia dos Três Corpos iria se tornar série pela plataforma de streaming NetFlix, interessei-me pela obra do chinês Cixin Liu. Ao me meter com ela, eu sabia que se tratava de 3 livros, mesmo assim decidi entrar nessa. Liu é acessível em sua escrita e constrói um universo com personagens críveis e consegue colocar muito de suas dores e feridas políticas e familiares no seu texto. O autor faz isso ao inserir sua narrativa no contexto histórico da Revolução Popular Chinesa, que teve como propulsor o Partido Comunista chinês. Um mergulho nos traumas que este evento histórico deixou em seu povo. Mas tudo isso dentro de uma obra de ficção científica de primeira grandeza que possui como evento central a recepção e resposta de um sinal advindo de um mundo distante. Liu brinca com a perspectiva de como a humanidade reagiria frente a constatação de que receberemos, em algum momento no futuro, a visita dominadora de seres mais avançados do que nós. Mas mais que isso, o autor deixa transbordar para fora de suas páginas a frustração e decepção com a índole humana.


Longe de ser um relato convencional sobre a vida no Western selvagem, Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy é uma obra de difícil digestão, não apenas pela violência nua e crua que traz, mas também por McCarthy escrever, propositalmente, de forma praticamente contínua, sem as pontuações que, em geral, delimitam diálogos e nos dão o efeito de continuidade. Isso faz da obra um "cavalo" a ser domado à força, o que exige do leitor perseverança. A despeito disso, o autor nos entrega um livro que pode ser facilmente descrito como monumental e universal dado a profundidade com que alcança a selvageria implantada no homem em todo seu efeito destrutivo. Além disso, nos apresenta um dos "vilões" mais complexos, perigosos e terríveis que já conheci, o Juiz Holden. Não pude deixar de encontrar paralelos em outro personagem tão brutal e complexo quanto ele, o personagem Kurtz, comerciante de marfim que se embrenha na floresta do Congo e lá se deixa seduzir pela profundidade do horror no romance O Coração das Trevas de 1902 de Joseph Conrad. Meridiano de Sangue trabalha com a mesma matéria prima que Conrad trabalhara em 1902, só que agora tendo como pano de fundo o West sem lei e o choque entre povos. Publicado em 1985, Meridiano de Sangue transcende seu propósito e poderia muito bem ser analisado por meio de diversos matizes. McCarthy é autor também de outro grande livro, Onde os Velhos não Tem Vez, adaptado para o cinema como Onde os Fracos não Tem Vez.


Se por um lado a literatura Pulp foi seminal em lançar diversos autores, hoje aclamados, por outro, alguns autores ficaram, injustamente menos conhecidos do grande público. Caso, por exemplo, de Tod Robbins. Robbins foi autor de diversas obras, dentre elas o conto Spurs (Monstros), publicado em 1923. Conto que depois ganhou as telas no famoso e, por que não "maldito", filme de 1932 FREAKS, dirigido por Tod Browning. "Maldito" porque o filme ficou banido na Inglaterra por 30 anos. A Editora Andarilho veio preencher uma grande lacuna existente no Brasil ao trazer uma assinatura por meio da qual o leitor recebe mensalmente um livro de bolso da Era Pulp (muitos inéditos no Brasil) de autores que brilharam e delinearam as bases do terror, horror, ficção científica e fantasia. É nesta coleção da Editora Andarilho que se insere o livro Pela Arte de Tod Robbins. A coleção vale a pena de ser assinada, não apenas pela qualidade do material, mas também pelo cuidado editorial. Autores como Algernon Blackwood, Arthur Machen, Gertrude E. Trevelyan, Gertrude Barrows Bennett, são apenas alguns dos exemplos. No caso de Pela Arte temos uma narrativa envolvente onde um artista cruza o caminho de outro. Este último, de nome Martin, levará nosso protagonista às raias da loucura ao escrever de forma vívida acerca de experiências macabras e terríveis. Robbins busca elucidar o poder da arte sobre a psiquê humana, bem como sua potencia ao desencadear sentimentos dos mais profundos e, às vezes, inumanos em nós. Recomendo muito!!

E sua viagem literária em 2024? Qual foi? Deixe nos comentários.

Um comentário:

  1. Que delícia de travessia, Marcelo. Seu texto me levou por muitas estradas de papel e pensamento e, mais que isso, me lembrou que há livros que não apenas contamos que lemos, mas que nos contam também. Zalla, Coelho Neto, Cixin Liu, McCarthy, Robbins… cada nome que você cita carrega uma geografia própria, uma densidade emocional, quase como se estivéssemos cruzando continentes invisíveis.
    É bonito ver como você valoriza o gesto do resgate: autores esquecidos, histórias soterradas pelo tempo, silêncios que agora voltam a falar. E como fala bem, você! Consegue colocar lado a lado a brutalidade do Meridiano de Sangue e a delicadeza da curadoria que revive Coelho Neto, como se ambos fossem páginas de um mesmo atlas emocional.
    Também viajei muito em 2024 anos mas confesso que agora, depois de ler seu relato, quero refazer o roteiro. Obrigada por compartilhar com tanto entusiasmo, generosidade e conhecimento. Isso também é literatura: o encontro entre leitores que se reconhecem.
    Obrigada 🙏🏻
    Um abraço,

    Fernanda!

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