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sábado, 29 de agosto de 2020

Pílula Gráfica #1: Batman - Amaldiçoado (2019)


Em substituição ao inesquecível (mas também desgastado) selo Vertigo, a DC Comics inaugurou a linha Black Label. Os primeiros lançamentos, possivelmente para impulsionar a iniciativa, envolvem personagens clássicos da editora, como é o caso de Batman - Amaldiçoado. Com roteiro de Brian Azzarello (Coringa, O Cavaleiro das Trevas III - este último ao lado da lenda Frank Miller) e do incrível artista Lee Bermejo (Batman - Noel), a qualidade gráfica é indiscutível. Mas meu ponto aqui hoje é o interessante e obscuro roteiro de Azzarello. Fica claro para mim que há uma clara referência e ligação com a emblemática e seminal HQ A Piada Mortal de Alan Moore. A história envolve claramente o universo místico da DC, e é um verdadeiro prazer se deparar com clássicos personagens mágicos da editora em versões muito interessantes e alternativas. É o caso do Desafiador, apresentado com o corpo com todos os músculos à mostra. Nunca tinha pensado nisso, mas a roupa original vermelha do personagem é exatamente da cor do tecido muscular após dissecação. Uma incrível sacada de Azzarello/Bermejo. Outro personagem repaginado é o demônio Etrigan que, como rimador, tem tudo a ver com um "rapper". Constantine, Zatanna e o Monstro do Pântano também aparecem, porém em versões mais próximas de suas versões do universo tradicional. Considerando o público a que o selo Black Label se dirige, o Batman apresentado mostra não apenas um violência desmedida, mas também uma outra característica que chega a incomodar o leitor e fã mais antigo do Morcego, ou seja, uma descrença e quase total frustração com sua própria cruzada pessoal contra o crime, o que foi doloroso para mim como fã antigo. Mas uma última e mais importante questão que gostaria de refletir aqui é em relação ao desfecho da obra. Embora eu não vá dar spoiler, a questão final fica em aberto para o leitor. O desfecho, embora diferente, emula em certa medida o final de A Piada Mortal de Moore e, ao fazê-lo, abre questões que gostaria muito de debater com alguém que leu a HQ, são elas: 1) Há um ciclo ou vínculo, quase místico, envolvendo esses dois personagens (Batman e Coringa)?; 2) Acabamos por ficar presos pela eternidade às nossas obsessões? Somos definidos por estas obsessões?; O ódio cultivado dentro de nós poderia nos envenenar e nos tornar agressores?... Há várias outras questões subjacentes no texto de Azzarello que gostaria de refletir sobre elas com alguém. Acredito que o final ficará em aberto para sempre, assim como ficou o da HQ de Alan Moore, e é justamente a ambiguidade deste desfecho que nos desconcerta.









domingo, 16 de agosto de 2020

Pílula Fílmica #10: Dois Papas (2019)


Dois Papas (Dir. Fernando Meireles - 2019) é uma obra com muitas camadas. Há a camada política, ao apresentar a grande intersecção da Santa Sé com aspectos políticos internos (em sua relação com a cúria romana) e externos com outros países. As demandas sociais são claramente escancaradas a partir do sútil retrato da desigualdade mundial. A camada econômica permeia muito as cenas, ao apresentar a perspectiva dos rumos do dinheiro no mundo através dos trechos dos discursos do jovem e velho Bergoglio. Há, no entanto duas outras camadas que são as que tornaram o filme muito relevante para mim. Uma delas é a humana, que nos deixa claro que, se formos sinceros e humildes o suficiente para percebermos nossos erros, a redenção passa a nos acenar. Agora, a última e extremamente interessante camada, é a espiritual. Dentro desta perspectiva há duas cenas que para mim são as centrais na obra. A primeira delas é a cena em que a fumaça da vela apagada por Bento XVI desce, ao invés de subir, em uma referência clara ao conceito espiritual que nossas orações e ações podem subir e serem recebidas (ou não) como um "cheiro" suave por Deus. E a segunda cena é aquela em que a fumaça da vela (ao final do filme) sobe, e não mais desce, em outra clara referência espiritual de que nossos atos internos e externos tem o poder de serem recebidos por um ser Ser Supremo à semelhança dos antigos sacrifícios do Velho Testamento. A sutileza e poder destas duas cenas emolduram a ideia da convivência pessoal genuína com Deus e afasta o filme das intermináveis discussões teológicas e denominacionais que, no fundo, não levaram e não levarão a lugar algum. Não posso deixar de citar a agradável atmosfera dramática criada a partir de um inteligente humor na medida certa, que captura o espectador fazendo-o submergir nos personagens e se identificar com eles. Em tempos em que as "pontes" sociais, econômicas e humanas estão ameaçadas, vejo o filme como uma obra que nos lembra a importância de preservar as pontes existentes, e nos chama à construção de novas.

domingo, 2 de agosto de 2020

Das Estrelas ao Oceano


A editora Martin Claret é a casa de grandes livros já há muito tempo. Sua proposta de lançar clássicos literários em formato de bolso, em capa cartonada, de baixo custo e em pontos de grande circulação é louvável e necessária em tempos de tão baixo índice per capita de leitura. Mais recentemente, no entanto, a editora vem também investindo em um acabamento gráfico mais requintado, sem abrir mão de sua consagrada curadoria. Alguns exemplos desta nova proposta são O Homem Que Ri de Victor Hugo e Grande Contos de H.P. Lovecraft. Desta safra também faz parte Das Estrelas ao Oceano, uma coletânea de 5 incríveis contos de ficção científica de 4 grandes mestres: H.G. Wells, Júlio Verne, H.P. Lovecraft e J.H. Rosny Aîné. Para além do seu conteúdo obviamente de qualidade, o livro é um primor por outras razões, a começar pelo projeto gráfico de um estúdio chamado Manga Mecânica Studios. A linda capa tem toda uma simbologia para quem lê o livro, pois faz referência à cada um dos 5 contos. Além disso, o livro foi impresso em um formato que me lembrou muito as edições do saudoso Círculo do Livro. Empresa que fazia a alegria de leitores pelo Brasil inteiro nos anos 80 com sua revista bimestral a partir da qual podíamos fazer nossos pedidos de livros. Não apenas o formato externo lembra as edições do Círculo do Livro, mas o tamanho da fonte e o papel das páginas.

Maravilhoso projeto gráfico do Manga Mecânica Studios

Os dois primeiros contos que abrem o livro são de autoria do consagrado H.G. Wells. Fica muito patente a grande cautela (que beirava o pessimismo) que Wells tinha em relação ao futuro. Muito desse pessimismo, aliás, se mostrou verdadeiro como viria a provar o Século 20. Em A ESTRELA, Wells nos presenteia com uma história que (acredito eu) deva ter servido de base para Lars Von Trier filmar o seu MELANCOLIA de 2011. A frustração, negação, desolação e melancolia da humanidade diante de um desastre iminente transborda pelas páginas. O 2º conto do autor, ARMAGEDDON: O SONHO, mantém a perspectiva de cautela e certo pessimismo do autor em relação aos rumos da humanidade. Esta característica confere à H.G. Wells a qualidade de observar os homens sob um prisma muito peculiar, o da realidade sem ceder à sentimentalismos.

H.G. Wells

Editado pelo filho de Júlio Verne, o conto O ETERNO ADÃO não é apenas intrigante, mas oferece uma forma diferente de pensarmos o passado e a origem da humanidade. A construção narrativa de Verne é verossímil, sobretudo ao nos oferecer uma interpretação perfeitamente possível para nossas origens, além de expressar o orgulho e a soberba humana diante de seus próprios feitos, o que nos conduz ao esquecimento de que somos apenas mais uma espécie residente nesta casa chamada Terra. Influenciado pelas descobertas da época, e pela construção Darwinista da realidade, Verne nos apresenta um conto instigante e intrigante, com a ciência a emoldura-lo de forma brilhante.

Júlio Verne

A pérola da coletânea para mim é o conto O TEMPLO, de H.P. Lovecraft. Dono de uma fama póstuma incrível, Lovecraft é o tipo de escritor que, assim como seu contemporâneo e criador do ConanRobert E. Howard, acabou sendo mais conhecido por meio das obras que inspirou. Embora eu soubesse da importância de Lovecraft para o gênero terror e ficção, para minha vergonha eu nada havia lido dele ainda. Pois ao ler O TEMPLO eu percebi da onde vem toda fama e reconhecimento. Lovecraft realmente consegue nos levar a um envolvimento tal que acabamos por experimentar, em certa medida, as sensações de medo e assombro dos personagens. Somos levados a perceber o deslumbramento mítico a que o homem é suscetível quando confrontado com sua pequenez diante de mitos, lendas e, porque não, verdades. Se ler Lovecraft estava em meus planos, a partir de agora serei obrigado a fazê-lo imediatamente.

H.P. Lovecraft

O francês J.H. Rosny Aîné fecha a coletânea com o conto UM OUTRO MUNDO. O autor narra o nascimento de um homem extremamente estranho, a começar pela coloração violeta clara de sua pele. Muito magro e esquelético, o jovem é dono de uma visão capaz de enxergar espectros da luz e da radiação invisíveis ao olho humano comum. Alem disso, possui um raciocínio e agilidade física extremamente elevadas. Nascido em uma família simples em uma cidade da Holanda, o estranho menino logo descobre outros sentidos, dentre eles a capacidade de enxergar uma realidade paralela a nossa e que existe à poucos milímetros de nós. Uma realidade que co-existe à nossa mas que nos é invisível porque "vibra" em uma ressonância diferente da de nossos átomos. É incrível verificar que em 1895 (data da publicação deste conto) o autor imaginou algo que é bem possível que seja verdade, uma vez que a teoria das cordas sugere exatamente estes estados vibracionais diferentes da matéria. Para mim este conto de Aîné soa quase como uma profecia! Com um final muito interessante também!

J.H. Rosny Aîné

A Martin Claret acertou em cheio ao publicar Das Estrelas ao Oceano. Este será um livro ao qual voltarei no futuro para rele-lo em função da atemporalidade de seus contos, ideias e pressupostos. Uma das minhas melhores leituras de 2020 até o momento!
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