Dizer que há uma fórmula para se fazer uma boa obra é, sem dúvida nenhuma, uma grande bobagem. Mas talvez pudéssemos teorizar a respeito de elementos que possivelmente contribuem. Por exemplo: 1) personagens críveis que nos trazem (aos poucos) uma identificação profunda com eles; 2) um pano de fundo, seja ele épico ou não, que respeite o "espírito do tempo" (contexto) da época ali retratada; 3) um enredo dentro do qual os dramas humanos crescem a transbordam, deixando apenas a violência e outras "pirotecnias" narrativas como moldura para as pessoas de carne e osso... entre outras. FACE OCULTA é um quadrinho da Editora Italiana Sergio Bonelli lançado pela Panini aqui no Brasil entre setembro de 2016 e maio de 2018 em 3 volumes. Posso antecipar que a obra já figura entre minhas melhores leituras de 2020 e, possivelmente, passe a integrar meu panteão de HQs favoritas. Escrita pelo roteirista, cantor e compositor italiano Gianfranco Manfredi, FACE OCULTA narra a vida de Ugo Pastore, um jovem pacifista que se vê lançado dentro de uma Guerra já esquecida empreendida pela Itália no final do século 19. Na época o país europeu voltou sua atenção colonialista para a África, mais especificamente para Etiópia, um importante local que serviria de base para as intenções comerciais e territoriais Italianas. A isso se sucedeu a 1ª Guerra Ítalo-Etíope 1895-1896.
Mas o que parece ser um episódio longínquo e obscuro da história Italiana ganha proporções gigantescas dentro de FACE OCULTA. Percebe-se o quão sofrido, violento e marcante pode ser um conflito. Além de como determinados momentos da história de um país podem rapidamente serem esquecidos ainda que tenha custado milhares de vidas. A Etiópia é apresentada como um país que, apesar de pobre, possui um povo incrível, sofrido e apto a lutar. A Itália em sua arrogância experimenta uma das suas mais estrondosas derrotas (e isso não é "spoiler" já que está nos livros de história).
Lançado no Brasil em 3 volumes, FACE OCULTA tem como outra figura central o guerreiro Etíope conhecido como Face Oculta, que dá nome à obra. Um homem que nunca mostrou seu rosto a ninguém e é dono de uma coragem e virtude sem igual, o que passa a lhe render a fama de um homem quase santo. Apesar de fictício, Face Oculta se baseia em vários personagens da época. Junta-se ao núcleo central de personagens o Tenente Vitorio de Cesari e a jovem dama Matilde Sereni. Apesar deste núcleo (Ugo, Face Oculta, Vitorio e Matilde serem fictícios), os demais personagens da série não o são. Por exemplo o Monarca da Etiópia o Rei Menelik II, sua Rainha extremamente influente e estrategista Taitú, além dos vários militares Italianos que aparecem ao longo do combate.
Se você está esperando uma aventura romanesca posso dizer que você até a encontrará, no entanto o diferencial da obra é apresentar a vida "nua e crua" próximo à virada do século. A maioria das obras, filmes e relatos históricos a que fomos apresentados sobre a época, nos passaram uma violência e uma crueza já filtradas, o que nos distancia do drama e do pouco valor que se dava a vida humana. Isso até parece destoar da pompa e circunstância do período, mas é o que acontecia abaixo dos salões dos palácios. O autor conseguiu criar personagens que são realmente humanos. Mesmo o herói de guerra, o jovem Tenente Vitorio de Cesari, encarna uma pessoa que se torna viciado na violência, na guerrilha e, portanto, nada parece com um herói.
Já a dama Matilde personifica a mulher da alta sociedade na virada do século 19 para o 20. Insegura, apaixonada, rica e com forte inclinação para a loucura, Matilde lembra muito o papel de Ingrid Bergman no famoso filme de 1944 Gaslight (À Meia Luz), no qual interpreta uma jovem herdeira que sofre abusos psíco-emocionais. Mas a grande promessa é Ugo Pastore. Exímio atirador, Ugo tem um problema na visão esquerda que em nada o impede de ter uma pontaria incrível. Apesar disso nega-se a matar. Não quero dar "spoiler", mas só posso dizer que Manfredi conseguiu construir um herói sombrio, íntegro, amável, mas ao mesmo tempo seguro e firme, e que ao final de FACE OCULTA terá sido provado e se transformado em alguém digno de ser um verdadeiro e sombrio herói. Qualquer semelhança de personalidade com um certo Bruce Wayne acredito não ser mera coincidência, só que no caso de Ugo é melhor, porque o leitor consegue submergir no drama pessoal do personagem e assim realmente se torna próximo dele. Algo que, em relação à Bruce Wayne nunca tivemos muita chance de fazer, já que sua história sempre nos foi narrada em flashes.
FACE OCULTA entrega uma história épica como há muito tempo não via. Não é exagero compara-la a outras obras épicas que tiveram como pano de fundo Guerras e sofirmento como é o caso de "...E O Vento Levou" de
Margaret Mitchell e "Dr. Jivago" de
Boris Pasternak. No início de cada capítulo de FACE OCULTA,
Gianfranco Manfredi escreve excelentes textos introdutórios que contextualizam e dimensionam muito bem o desenrolar da trama. Uma novidade (para minha alegria) que fiquei sabendo assim que terminei de ler FACE OCULTA, é que a história tem continuação com
Ugo Pastore à frente, e já está em financiamento coletivo na
Plataforma Catarse. Intitulada
Shangai Devil, o leitor continuará acompanhando a trama tendo agora um outro pano de fundo histórico,
A Rebelião dos Boxers na China entre 1899 e 1901. Minha sugestão à você seria ler FACE OCULTA e apoiar o projeto de
Shangai Devil. Valerá a pena!
O Rei Menelik II e sua poderosa consorte, a Rainha Taitú.