Tom King, roteirista de quadrinhos, ex-agente da C.I.A. e um dos nomes mais falados ao lado de
Jeff Lemire, surpreendeu o mercado inicialmente com seu trabalho na HQ autoral
Xerife da Babilônia (que particularmente não li). Seu nome entrou para o radar de muitos aqui no Brasil, sobretudo a partir do lançamento de sua série envolvendo o
Sintozóide Visão (
Visão Vol. 01 - Pouco Pior que um Homem e
Visão Vol. 02 - Eu também Serei Salvo pelo Amor), esta sim que li e achei muito, mas muito acima da média em qualidade. Por conta disso, seu trabalho envolvendo o personagem
Senhor Milagre vinha sendo aguardado por toda uma legião de fãs.
King tem uma abordagem muito voltada para questões filosóficas e existenciais, utilizando-se dos personagens como veículos de suas reflexões, sem deixar de lado (obviamente) o universo no qual o super-herói está inserido. Desta forma já sabíamos que seu trabalho envolvendo o
Sr. Milagre teria esta perspectiva. Apesar de eu já saber desta característica marcante do trabalho do autor, fiquei surpreso em
Sr. Milagre com a densidade dramática e com os aspectos profundamente depressivos envolvendo a narrativa. Vamos então conhecer um pouco (sem
spoilers) deste último trabalho de
Tom King aqui no Brasil.
Escrever um arco de histórias envolvendo personagens do
4º Mundo é um desafio para qualquer roteirista. O
4º Mundo foi uma Saga criada pelo Rei
Jack Kirby durante sua passagem pela Editora DC nos anos 70.
Kirby concebeu uma mitologia completa envolvendo dois Mundos irmãos:
Nova Gênese e
Apokolips, lar do
Pai Celestial e
Darkseid, respectivamente. Mundos irmãos, porém antagônicos. O
Senhor Milagre ou
Scott Free (seu nome verdadeiro), é filho do
Pai Celestial (Regente de
Nova Gênese), e foi objeto de uma troca ainda bebê para selar um tratado de paz entre os dois mundos. Enquanto
Scott Free foi enviado para ser criado pelo cruel
Darkseid, o Pai Celestial de
Nova Gênese recebeu como seu próprio filho
Órion, filho do déspota
Darkseid. Um acordo absolutamente cruel e impensável, mas que foi feito. A Saga do
4º Mundo ou dos
Novos Deuses (como também é chamada) é uma obra-prima e introduziu personagens extremamente interessantes e críveis. Uma verdadeira
Space Opera quadrinística que finalmente chegará ao Brasil em breve pela
Editora Panini dentro da série
Lendas do Universo DC (fique atento). Fica claro, portanto a responsabilidade de
Tom King ao assumir um arco como esse.
Para mim ficou muito claro que muitas reflexões feitas pelo personagem Sr. Milagre/Scott Free ao longo do arco, são reflexões do próprio autor Tom King. Há um profundo sentimento de depressão e melancolia que permeia a obra. King mistura o cotidiano do Senhor Milagre, casado com a Grande Barda, e vivendo em Los Angeles, com a insanidade da Guerra novamente declarada entre Nova Gênese e Apokolips, e que ele tem que assumir e até liderar. Um sentimento profundo fica patente nas falas do personagem principal, a ideia de que tudo a sua volta não faz o menor sentido em função de que a maior questão de sua vida sempre esteve em suspenso, ou seja: Quem ele é? Como seu pai teve coragem de troca-lo? Qual o sentido de tudo que nos rodeia frente ao absoluto e total caos no qual o mundo atualmente vive, com a superficialidade de suas redes sociais, notícias e pessoas FAKES? Na ausência de respostas para estas perguntas o que Scott Free faz é simplesmente deixar-se levar pela loucura das situações sem sentido.
Um acontecimento marcante envolvendo o herói já nas primeiras páginas do 1º volume já resume bem o que eu disse acima. O leitor mais atento perceberá que toda essa falta de rumo e de direcionamento é algo, muito provavelmente, experimentado pelo próprio autor. Isso porque seria muito difícil conduzir essa história mantendo esse tom contínuo de desconexão com a própria identidade sem um mínimo de experiência própria. Como informado no início da matéria,
Tom King foi agente da C.I.A., e possivelmente teve acesso em menor ou maior grau a decisões que, possivelmente o fizeram desconectar-se de si mesmo, ou descrer do
status quo. No arco envolvendo o
Visão já ficava claro essa busca filosófica do autor. De qualquer forma, para além desta abordagem,
Senhor Milagre de
Tom King aprofunda-se muito bem na Mitologia criada por
Jack Kirby. Aparecem o amigo
Oberon, além de
Órion,
Vovó Bondade,
Desaad,
Kalibak, as
Fúrias,
Metron... ou seja, o leitor não ficará com a ideia de uma história escrita por um novato ou desinformado sobre os
Novos Deuses. No entanto, aqui vai um questionamento que faço e que gostaria muito de ouvir a opinião de quem já leu: Como fica os eventos mostrados nesta série em relação à cronologia oficial? Digo isso porque as coisas que acontecem na história são simplesmente bombásticas! E se isso fizer parte da cronologia oficial, então simplesmente a "casa caiu" (!), pois como ficaríamos depois destes acontecimentos?
As respostas para essa minha pergunta estariam dentro de três possibilidades, são elas: 1) a história não faz parte da cronologia oficial, devendo ser considerada apenas um delírio criativo de King; 2) a história seria algo irreal, ou seja, construído pela mente angustiada e melancólica de Scott Free; 3) a terceira e última hipótese (e que eu acho mais plausível) prefiro não comentar aqui para não gerar spoiler. Vou deixar esta última hipótese para conversar com quem quiser nos comentários abaixo. Assim, se você ainda não leu a história, é só ler e depois voltar aqui nos comentários da matéria para debatermos. Há inúmeras referências e metáforas espalhadas pela história, e só isso já daria debates interessantes acerca do que cada um deles significa. Por exemplo, de tempos em tempos há distorções nos desenhos, como se fossem uma interferência. Isso pode ser visto na 2ª imagem desta matéria. Se você observar direitinho perceberá que há uma parte dela que está distorcida e em descompasso com o restante. Esse efeito é constante ao longo da história e em minha opinião significa algo que validaria minha 3ª hipótese (que explicarei nos comentários abaixo para quem quiser).
A arte ficou ao cargo de Mitch Gerads, desenhista estadunidense de 37 anos. O tipo de arte de Gerads à princípio não me agradaria, mas surpreendentemente o desenhista me fisgou ao introduzir um elemento emocional extremamente forte nos desenhos, trazendo alma e profundidade às imagens (vide acima). Algo muito importante em uma HQ na qual há silêncios e movimentos sutis dos personagens, coisas que o leitor deve prestar muita atenção para experimentar toda dimensão da história. Isso fez com que o trabalho de Gerads entrasse para meu radar de leitor a partir de agora. Não posso de deixar de mencionar a semelhança do traço de Gerads com o de outro desenhista imortal, Bill Sienkiewicz.
Bem amigos... Gostaria muito de saber a opinião de você sobre esta história, sobretudo em relação a interpretação dos fatos nela ocorridos e suas implicações cronológicas e mitológicas para os Novos Deuses. Tenho minhas hipóteses. Quais são as suas?
Forte abraço!