Translate

domingo, 27 de dezembro de 2020

Viagem Literária - 2020


O que você leu em 2020? Por quais lugares sua mente divagou? A minha, em particular, fez voos por lugares muito diferentes e distantes. Mas em  todos os casos muito interessantes, às vezes estranhos e fantásticos, mas sempre positivos ao me auxiliar na difícil tarefa de enfrentar o contexto pandêmico. Viajei inicialmente à um mundo alternativo criado pela filósofa Ayn Rand em que ela ilustra seu curioso ponto de vista político e econômico no livro A Revolta de Atlas - Vol. 01. Estimulado pela forma de pensar do roteirista Alan Moore, li o seminal livro do Biólogo inglês Rupert Sheldrake intitulado A Ressonância Mórfica e a Presença do Passado - Os Hábitos da Natureza onde é apresentada sua elegante forma de explicar a vida e o que estaria por trás dos (ainda) inexplicados comandos para que nasçamos e cresçamos. Depois disso tive a vontade de me deixar envolver pelo estranho caso que sucedeu à Família Harper, na Rua Wood Lane Nº 84, Subúrbio de Enfield em Londres em 1977. Um relato incrível de um dos Poltergeists mais documentados da história apresentado no livro 1977 - Relatos Sobrenaturais - O Caso Enfield. Em seguida submergi na visão de quatro célebres e clássicos escritores da ficção científica na ótima antologia Das Estrelas ao Oceano. Talvez subconscientemente impulsionado pela pandemia pelo novo Coronavírus resolvi então retirar da estante um livro sobre os riscos biológicos de uma ameaça planetária no romance O Enigma de Andrômeda. Depois de muito postergar, resolvi ceder ao mundo ficcional de H.P. Lovecraft ao ler Nas Montanhas da Loucura, um relato ficcional com aspectos fantásticos e profundamente existências. No apagar das luzes de 2020 tirei da estante a biografia de uma das mentes mais inquietas, obscuras e fantásticas até hoje, o já mencionado Alan Morre, na biografia O Mago das Histórias


Manifesto de direita ou crítica legítima ao socialismo? A Revolta de Atlas traz a perspectiva da filósofa Russa radicada nos EUA Ayn Rand acerca da política social que deveria ser aplicada em sua opinião, a saber, o individualismo e a razão como únicos meios de adquirir conhecimento. Em seu conjunto de valores Rand rejeitou a fé, a religião e o altruísmo, apoiando o egoísmo racional e ético. Embora, eu não concorde com a aplicação ipsis litteris destes conceitos, eu sempre quis conhecer as ideias de Rand. Em A Revolta da Atlas a escritora constrói uma história envolvendo a personagem principal Dagny Taggart. Taggart é a herdeira de um império que parece ruir aos poucos à mercê de uma política em que tudo deve ser compartilhado em prol do bem comum. Leis e políticas de Estado são implementadas para garantir o desmantelamento da propriedade privada nos EUA. No entanto, uma apatia quase sobrenatural parece tomar conta de tudo e de todos, fazendo com que tudo que vai sendo compartilhado acabe se esfacelando pela falta de empreendedorismo e apatia das pessoas. Há princípios que vão sendo claramente apresentados ao longo da trama, um deles é de que a falta de estímulo mina a vontade humana de crescer. Apesar de polêmica, Rand possui uma verdadeira legião de fãs, incluindo o roteirista Steve Ditko (falecido em 2018), co-criador do Homem-Aranha ao lado de Stan Lee. Ditko chegou a criar personagens baseados no Objetivismo de Rand, como por exemplo o personagem Questão. Neste primeiro volume da série Rand, deixa várias coisas em suspenso, mas abre claramente o caminho para suas ideias.

Quando li A Saga do Monstro do Pântano do escritor Alan Moore, fiquei surpreso com tamanha genialidade ao refazer um personagem à luz da ideia de um "Campo de Ressonância" que permeia as criaturas vivas, e de onde muito do que somos provêm. O próprio Moore, no entanto, atribui estas ideias à Rupert Sheldrake, biólogo inglês que criou uma teoria muito elegante acerca dos comandos naturais aos quais estamos sujeitos. No livro A Ressonância Mórfica e a Presença do Passado - Os Hábitos da Natureza suas ideias são fundamentadas e apresentadas. Sheldrake em linhas gerais explica que as experiências vividas por uma espécie acaba por criar um campo de ressonância, o campo morfogenético. O autor ilustra que tijolos, cimento e madeira são ingredientes para se construir uma casa. Mas em separado de nada servem. É preciso de um plano de construção e sobretudo de comandos para a construção da casa. Nossa herança genética são o cimento, madeira e tijolos, mas tal herança não explica de onde vem os comandos necessários para que todas as proteínas se combinem de maneira ordenada para construção de um ser vivo. Isso não está nos genes. O livro é excepcional e traz uma concepção interessante acerca da vida, sem perder de vista a experimentação e fundamentação científica. Pena que esse livro é de uma Coleção Portuguesa (Coleção Crença e Razão). Mas consegui achar facilmente em uma livraria.


Às vezes a ficção invade nossa realidade e se impõe como fato. O livro 1977 - Relatos Sobrenaturais - O Caso Enfield do jornalista e testemunha ocular Guy Lyon Playfair, traz o que parece ser algo inconcebível para muitos, a interferência (acima de quaisquer suspeitas) de um ou vários Poltergeists que assolaram uma família (os Harpers) ao longo da 2ª metade de 1977. O caso foi extensamente documentado por Playfair e pelo colega Engenheiro e Pesquisador Maurice Grosse. O resultado dessa incrível experiência está neste livro publicado em primorosa edição pela Darkside Books aqui no Brasil. Playfair consegue realizar um relato humano e crível que não cai na armadilha de se tentar "florear" o ocorrido. Sua escrita é objetiva e cheia de compaixão pelo que a família Harper sofreu. Em seus vários pedidos de ajuda à outros profissionais ligados ao paranormal, tudo que Playfair conseguiu na época foi relatórios estapafúrdios de pesquisadores que atribuíam tudo à cabeça das meninas da família, na época pré-adolescentes. Ao não conseguirem explicar o que ali acontecia, toda culpa recaía sobre a família, taxados de embusteiros querendo chamar a atenção. Playfair e Grosse foram os únicos que acompanharam o lar dos Harpers até o fim e amenizaram o sofrimento da família. Um livro muito interessante e que não tenta dar nenhuma resposta cabal ao sobrenatural.


Na antologia de ficção científica Das Estrelas ao Oceano a editora Martin Claret traz cinco contos de quatro grandes autores clássicos: H.G. Wells, Julio Verne, H.P. LovecraftJ.H. Rosny Aîné. Publicados quando o mundo era totalmente diferente do nosso, os contos mantém o cerne de mistério que envolve, a seu modo, cada um deles. Além do óbvio exercício histórico que é lê-los, o leitor (ao abrir sua mente) consegue facilmente experimentar a estranheza e mistério proposto em cada narrativa. A proposta gráfica do livro em muito lembra os antigos lançamentos do hoje lendário e saudoso Círculo do Livro. A seguir seguem os nomes dos contos: de H.G. Wells, A ESTRELA, acerca da angústia em massa frente à destruição planetária iminente e ARMAGEDDON: O SONHO, um interessantíssimo relato sobre a matéria de nossos sonhos (!!); de Julio Verne, O ETERNO ADÃO, uma história envolvente acerca da nossa pequenez frente às modificações de nosso planeta; de H.P. Lovecraft o aterrador O TEMPLO, que traz o que há de melhor na narrativa do escritor, sua capacidade de expressar de forma surpreendente nosso passado; e de J.H. Rosny Aîné o UM OUTRO MUNDO antecipa, em minha opinião, o que hoje acredita-se como verdadeiro, a saber,  existência de mundos paralelos.

Possivelmente influenciado pela pandemia pelo Novo Coronavírus, retirei da estante o livro O Enigma de Andrômeda do conhecido Michael Crichton, escritor muito adaptado para o cinema. O livro, publicado ainda nos anos 60 traz o relato extremamente crível de como seria uma ameaça biológica ao Planeta Terra. Diferentemente da COVID-19, o vírus do livro, chamado de Variedade Andrômeda veio do espaço trazido por uma sonda/satélite sub-orbital. Absurdamente letal, o vírus extermina de pronto uma cidadezinha americana em apenas alguns minutos, já que era transmitido pelo ar. Narrado em tempo real, a história mostra os planos de contingência norte-americanos para esse tipo de ameaça. Aliás, eu propriamente nunca tinha pensado na perigosa possibilidade de algum artefato feito pelo homem (Ex. um ônibus espacial) que após um voo orbital acabasse trazendo algo letal para nossa espécie vindo do espaço. A obra foi adaptada para o cinema em um filme de mesmo nome de 1971. Embora o final seja um tanto quanto mal desenhado, o livro é muito interessante e vale sim a leitura pelo suspense muito bem construído e pelas incríveis informações que Crichton oferece acerca dos protocolos de segurança norte-americanos. Alguns deles, inclusive, nada éticos, humanitários ou morais.


Influenciado pela leitura do conto O TEMPLO de H.P. Lovecraft (1890-1937), presente na Antologia Das Estrelas ao Oceano (mencionada acima), tirei da estante o livro Nas Montanhas da Loucura. O autor influenciou absurdamente toda literatura fantástica que foi produzida no século XX e ainda reverbera mais do que nunca hoje. Ao ler Nas Montanhas da Loucura é possível entender um pouco o "porque". Lovecraft entendia a literatura fantástica como um dos únicos veículos capazes de transmitir as insondáveis memórias ancestrais de nossa espécie e iluminar o passado longínquo de nosso Planeta. A excelente introdução do livro, feita por Guilherme da Silva Braga, Organizador e Tradutor do livro contextualiza muito bem a obra dentro das ideias de Lovecraft. Inclusive os meandros da escrita do livro. A história apresenta uma expedição feita aos longínquos territórios gelados do círculo polar antártico, onde os desavisados exploradores se deparam com as ruínas de uma monumental cidade possivelmente datada de milhares de anos atrás, antes até dos Dinossauros. A narrativa mantem seu frescor, sobretudo em função das inúmeras e excepcionais maneiras de Lovecraft traduzir em palavras sentimentos obscuros guardados dentro de nós e que afloram quando estamos diante do insondável, do inimaginável, ou de paisagens que evocam em nós um sentimento ancestral. Não há como não se dobrar à isso!! Tanto que preciso transcrever aqui as palavras da escritora norte-americana Joyce Carol Oates que escreve o seguinte na quarta-capa desta edição da Editora Hedra:

"Existe uma grandeza melancólica e operística em Nas Montanhas da Loucura; uma curiosa poesia elegíaca de perda inefável, de desespero adolescente, e uma solidão existencial tão profunda que permanece na memória do leitor, como um sonho, por muito tempo depois que os rudimentos do enredo lovecraftiano se apagam" - Joyce Carol Oates. 

Alan Moore é um dos mais importantes, e talvez obscuros artistas, dos últimos 40 anos. Capaz de trafegar entre escrita, música, teatro entre outras expressões de arte, Moore é uma figura enigmática, brilhante, misteriosa em função de suas crenças, ética e honesta. Diante de suas incríveis obras para a 9ª Arte tais como A Saga do Monstro do Pântano, Watchmen, V de Vingança, Miracleman, Do Inferno (apenas para citar algumas), como não ficar curioso em conhecer mais de perto sua mente? Graficamente magnífico e com uma escrita apaixonada, o livro Alan Moore - O Mago das Histórias de Gary Spencer Millidge, faz jus à profundidade dos trabalhos do artista, além de descrever com incríveis imagens e diversas passagens sua vida pessoal e profissional. A edição da Editora Mythos é portentosa, com seus quase 30 cm de comprimento e 22 cm de largura. Impressão em papel de alta gramatura com excelente reprodução de capas, fotos e imagens. Mas mais do que toda esta estrutura gráfica, o conteúdo do livro é profundo e consegue transmitir como o autor pensa e no que acredita. A obra cobre praticamente tudo que ele produziu e não esconde características difíceis para nós entendermos, como por exemplo as crenças de Moore, que a partir de 1993 decidiu se tornar mago. Para todo amante dos quadrinhos, literatura e arte Alan Moore - O Mago das Histórias nos desafia a expandir nossa compreensão do que nos cerca. Sem dúvida nenhuma o livro será alvo de uma matéria completa aqui no Blog.

E você? Qual foi sua viagem literária feita em 2020? Quais lugares, mundos ou realidades você visitou? Conte aqui e, aproveitando... FELIZ 2021

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Destaques 2020 - Quadrinhos


Com o fim de 2020 se aproximando está na hora de mencionar as HQs que foram destaques entre minhas leituras nesses últimos 12 meses. A seleção se refere ao que li ao longo do ano, e não necessariamente às obras lançadas nesse período. Marcado como um ano de profundo impacto na vida de todos em função do novo coronavírus, as HQs mais que nunca funcionaram como escapismo à dura realidade pandêmica de confinamento e desgaste físico e emocional. Situações assim nos mostram como o bem estar pessoal se relaciona com a saúde mental, emocional e social, e a 9ª Arte mais que nunca forneceu momentos de repouso psíquico para mim. A matéria apresentará as HQs dentro de minha ordem cronológica de leitura.


O Desafiador (Boston Brand) é um dos personagens mais interessantes do Universo Místico da DC, no entanto, pouco já foi publicado no Brasil acerca de sua origem e motivações. Este encadernado levanta muito do manto de mistério sobre sua origem, sua relação com seu irmão, com a entidade Rama Kushna e com a cidade mística de Nanda Parbat. Publicada originalmente em formato de minissérie em 1986, Desafiador - Retorno à Eternidade é continuação direta da história Ninguém Escapa do Desafiador! que saiu em The  Brave And The Bold  n° 86 de 1969 (publicada aqui no Brasil há não muito tempo em Lendas do Cavaleiro das Trevas - Neal Adams volume 2), ou seja, uma história que demorou 17 anos para ser continuada. O encadernado é uma obra importante para a mitologia do personagem. Vale ressaltar que, infelizmente, a abordagem até um pouco engraçada dada à Boston Brand nas últimas décadas, como se ele fosse um espírito desencarnado com grande inclinação para a confusão, pouco tem a ver com sua trágica e triste origem. Este encadernado mostra essa angústia e posiciona bem o Desafiador dentro da esfera mística da DC. O personagem tem grande apelo dramático em minha opinião, o que foi muito bem explorado, por exemplo, em outra HQ de extrema referência chamada Deadman - Amor após a Morte publicada no Brasil ainda pela Editora Abril em 1990.


A edição Tex Gold - Em Território Selvagem é o Nº 45 da Coleção Tex Gold da Savat, atualmente em sua fase final aqui no Brasil. Tex é um dos personagens mais emblemáticos dos quadrinhos italianos e, para entender seu carisma é preciso imergir dentro das HQs do personagem. Ao fazer isso o leitor é rapidamente integrado à atmosfera selvagem do Velho Oeste, tendo em Tex a figura do herói do período que nada tem a ver com qualquer estereótipo panfletário. Nesta HQ, o DNA do personagem é muito bem apresentado, evidenciando Tex como uma mistura de homem simples, mas sábio, que sabe como e quando agir. As complexas situações nas quais ele é inserido são resolvidas de forma crível e permitem ao leitor uma imersão na época. Para quem, como eu, pouco conhece o personagem, será um prazer conhece-lo por meio deste volume. 


Demolidor por Frank Miller & Klaus Janson vol. 02 integra um pequena, mas brilhante coleção de encadernados da Panini com 3 volumes. Os encadernados apresentam a fase em que Miller construía uma nova abordagem do Demolidor no final dos Anos 70 (1979 à 1981). Estas histórias pavimentaram a mitologia urbana e definitiva do herói, retirando-o do ostracismo que ele amargava ao longo dos anos à época. Miller inovou com histórias que apresentavam a cidade como um lugar violento, perigoso, com muitos elementos dos filmes "noir". Coadjuvantes mundanos, tais como prostitutas, cafetões, criminosos e páreas dos mais variados tipos começaram a chamar atenção, aproximando O Homem Sem Medo a uma realidade crível, consolidando o caminho para o que viria logo a seguir, ou seja, uma das maiores histórias do Demolidor, a saber, A Queda de MurdockDemolidor por Frank Miller & Klaus Janson mantém o frescor das boas histórias e evidencia a mente de Miller e a arte de Janson.


Lançada pela Editora Panini em 3 volumes (o primeiro em 2016 e os dois últimos em 2018), Face Oculta foi uma das melhores coisas que li em 2020. O que pode parecer uma monótona HQ histórica, é na verdade um relato emocionante e cheio de viradas de um obscuro momento da história bélica da Itália. Escrita pelo roteirista, cantor e compositor italiano Gianfranco Manfredi, a obra narra a vida de Ugo Pastore, um jovem pacifista que se vê lançado dentro de uma Guerra infelizmente já esquecida atualmente. No final do século 19 a Itália voltou sua atenção colonialista para a África, mais especificamente para Etiópia, um importante local que serviria de base para suas intenções comerciais e territoriais. Diante deste painel político se sucedeu a 1ª Guerra Ítalo-Etíope (1895-1896) narrada na série. Face Oculta é uma obra extremamente interessante que chegou a chamar a atenção de militares italianos à época de sua publicação original em 2007. Cartas foram escritas para Manfredi por oficiais elogiando o resgate do autor e contribuindo com informações relevantes. Embora os 3 personagens principais da série sejam fictícios (Ugo Pastore, o Tenente Vitorio de Cesari e a jovem rica Matilde) os demais coadjuvantes que orbitam a trama são todos verídicos, o que expõe a complexidade de uma Guerra e toda maquinaria política por trás dela, isso tudo sem deixar a atenção do leitor se dissipar. A continuação do volume 3 foi financiada na plataforma de financiamento coletivo Catarse e se chama Shanghai-Devil, trazendo a continuidade das aventuras de Ugo Pastore. Uma iniciativa da Editora Red Dragon. Se você não conhece Face Oculta não perca tempo!


Após mais de 3 décadas A Saga do Monstro do Pântano de Alan Moore continua reverberando. Não há o que acrescentar aos adjetivos já usados para descrever o que Moore fez à frente do título. Ousado, brilhante, metalinguístico... Um trabalho que continua a nos impactar. Neste Livro Dois estão compiladas as edições originais de Swamp Thing Vol. 2 números 28 à 34 e ainda Swamp Thing Annual - Vol. 2 Nº 2. Especificamente neste Livro 2 da Panini temos o cerne do que Moore quis fazer com a criatura do Pântano. Encerra-se a conexão que ela tinha com Alec Holland, vemos se concretizar os planos malignos de Anton Arcane e temos como ápice disso a descida do personagem ao inferno através do "verde". Uma viagem não apenas espiritual, mas um mergulho nas concepções existenciais que nos rodeiam. Após este clímax Moore desacelera e publica três histórias autocontidas que são verdadeiras pérolas: Pog (#32), Abandonadas Casas (#33) e Rito de Primavera (#34). Pog é uma elegia à perda da conexão com a natureza, levando uma raça à melancolia e angústia ao se ver órfã no universo após degradar sua própria casa. Abandonadas Casas além de resgatar o passado do Monstro do Pântano, dá os primeiros passos para explicar o que realmente ele realmente é, ou seja, um Avatar do Verde. Rito de Primavera mostra a união sexual do Monstro com o Abigail Arcane, uma história que consegue traçar a profundidade que a união entre dois seres representa. Brilhante!


Em 2013 a Editora Devir iniciou a publicação de Imperdoável. Mas só foi a partir de 2018 (com a republicação do vol. 01) que a série ganhou fôlego no Brasil. Imperdoável é um trabalho autoral do conhecido e já laureado roteirista Mark Waid (Reino do Amanhã). A história é quase que um espelho distorcido do mito do super-herói. Tudo gira em torno de Tony, um super-herói que, tal qual Superman é todo poderoso, porém em algum momento Tony, ou melhor O Plutoniano (como é conhecido) sai dos "trilhos" e se torna um assassino em busca de vingança por todos os pequenos atos de rejeição que sofreu ao longo de sua vida. Por vezes o leitor se identifica com a solidão na qual Tony viveu e sofreu ao longo de sua vida, ao se ver sempre como um "inadequado", um "não aceito" em função de seus poderes que a todos inspirava um certo medo. A HQ é muito boa e não faz concessões aos atos de brutalidade de Tony. Mark Waid ao que tudo indica constrói um personagem além de qualquer redenção. Estes são os volumes 3 e 4. Uma série que tem valido muito a pena acompanhar!!


Embora já tenha ouvido falar muito de Hal Foster e seu Príncipe Valente, foi dentro da Coleção Príncipe Valente da Editora Planeta DeAgostini que finalmente pude entender porque o personagem é uma referência para toda 9ª Arte. Publicado ininterruptamente ao longo de décadas em formato de pranchas semanais desde 1937, Príncipe Valente de modo algum é datado. A coleção acompanha em ordem cronológica a epopeia do herói Arturiano. Com uma arte extremamente acadêmica e cheia de detalhes que nunca se chocam ou cansam, Hal Foster (que era também o desenhista da série) construiu um verdadeiro monumento perpétuo dentro dos quadrinhos. Cada volume da série é impressionante. Em 2020 pude ler apenas esse em função de muitas outras leituras acumuladas. Mas sem dúvida nenhuma Príncipe Valente estará entre meus destaques nos próximos anos!


Com o fim do selo Vertigo na DC, a Editora inseriu em seu lugar outro intitulado Black Label. E para mostrar seu investimento nesta iniciativa a DC trouxe diversos de seus medalhões para estrelarem histórias com desenhistas e roteiristas conhecidos, caso deste encadernado escrito por Brian Azzarello e desenhado pelo incrível Lee Bermejo. Embora tenha sido alvo de opiniões controversas (pelo que acompanhei nas redes sociais) Amaldiçoado foi uma grande experiência de leitura. Para além da óbvia e maravilhosa arte de Bermejo, com seu traço "encapotado", a história concebida por Azzarello é estranha e misteriosa. Para mim ficou clara a associação que o escritor faz entre Batman e Coringa, uma associação que transcende a realidade e a própria vida. Para mim o autor quis dizer, com o ambíguo final da história, que Batman e Coringa não são apenas dois lados da mesma moeda, na verdade talvez seriam a mesma manifestação. Em uma matéria que fiz apenas para discorrer sobre essa história lancei diversas conjecturas sobre o que Azzarello realmente quis dizer com aquele final. Sem dúvida uma obra que vale ser conhecida e dissecada em minha opinião.


Sou fã incondicional de Astro City, já expressei isso aqui no Blog em diversas matérias a respeito dos encadernados da série que já li (A Vida na Cidade Grande - Vol. 01; Confissão - Vol. 02; Álbum de Família - Vol. 03). Neste 4º Volume O Anjo Maculado, Kurt Busiek eleva ainda mais o nível de qualidade da série ao trabalhar a vida de Carl Donewicz, um criminoso que viveu relativos dias de glória na bandidagem no passado, mas que amargou 20 anos em uma prisão federal. Ao sair de lá, tudo que Carl quer é ficar em seu canto, sem arrumar confusão, sozinho com suas lembranças e, quem sabe num golpe de sorte fazer alguma coisa de bom na vida dentro do tempo que lhe resta. Ao desenhar Carl  Donewicz com a feição triste e cansada do ator Robert Mitchum o desenhista da série Brent Aderson acertou o tom perfeito para o personagem. Um trabalho primoroso que precisa ser redescoberto e apreciado. A série Astro City consegue, em cada um de seus volumes, desencavar os conceitos básicos dos super-heróis, transcendendo a avalanche dos inúmeros pastiches que invadiram o mercado dos quadrinhos (e que ainda existem) após a publicação de Watchmen de Alan Moore. 


Jeff Lemire é um dos roteiristas que vem se destacando no mercado dos quadrinhos, sobretudo em seus trabalhos autorais. É difícil dizer se suas histórias terão o impacto que as de outros grandes autores dos quadrinhos tiveram, mas sem dúvida nenhuma sua abordagem trafega dentro de um espectro da narrativa ficcional que gosto muito, ou seja, passeia pelo fantástico, terror, ficção científica... e tudo conduzido de uma forma a não engolir os dramas pessoais dos personagens. Há respeito por eles. Em Black Hammer, Lemire homenageia os quadrinhos de super-heróis trazendo suas versões de grandes heróis clássicos dos quadrinhos. É possível reconhecer facilmente amálgamas de Capitão América/Demolidor, o Caçador de Marte, além de Shazam... entre outros. Mas o grande mérito do autor é fazer esta homenagem de forma distorcida; por vezes parece que estamos em um episódio de uma série de terror que rapidamente migra para ficção científica que rapidamente se transforma em um episódio de Além da Imaginação (The Twilight Zone). Embora tenha lido algumas críticas negativas quanto à simplicidade do final da saga, mais do que o fim, a importância da série está na construção e ambientação de cada personagem. Muito bom!


Uma HQ que pareceu ficar um pouco à margem dos lançamentos mainstream foi Bowie - Stardust, Rayguns & Moonage Daydreams, um quadrinho feito de fã para fã do Camaleão David Bowie. A partir de um relato coerente, mas com uma atmosfera onírica, o autor apresenta os primeiros anos da carreira de Bowie. A história é recheada de referências musicais e episódios de bastidores do artista. Um dos grandes méritos é mostrar o processo criativo do músico que parecia ser algo quase "espiritual", ao se conectar com os personagens que eram gestados dentro de si e que erupiam em suas performances. As conexões de Bowie com o mundo pop foi tamanha que extrapolou os recônditos musicais, transbordando para a cultura cinematográfica e literária. Uma obra que precisa ser conhecida e reconhecida!


A nova série do Incrível Hulk indicada ao Prêmio Eisner chegou ao Brasil em 2019 e após angariar diversos comentários favoráveis nas redes sociais me chamou atenção. Li os dois primeiros encadernados em capa cartonada que a Editora Panini lançou no Brasil (recentemente saiu o volume 6). A abordagem do roteirista inglês Al Ewing é interessante e foge das muitas outras já feitas ao personagem. Com uma narrativa voltada para o horror e terror, o Gigante Esmeralda não parece mais o mesmo; para o leitor é até difícil reconhecer que um dia ele foi classificado como herói. Ainda é cedo para dizer para onde Ewing está indo, mas os dois primeiros volumes se mostraram interessantes. Ainda não tenho elementos para dizer se a série é ou não merecedora de tantos comentários positivos, mas no mínimo é uma HQ acima da média. Menção honrosa aqui!


O Fantasma é sem dúvida um herói com uma mitologia interessante mas que, para minha vergonha, nunca foi alvo de minha atenção. Lançado pela Editora Mythos o encadernado O Fantasma por Jim Aparo traz a passagem do desenhista pelo personagem, época em que o Espírito-que-Anda era publicado pela Charlton Comics. O volume congrega todas as histórias que saíram pelas mãos de Aparo, de abril de 1969 à junho de 1970. Embora os roteiros pareçam relativamente simples, é incrível como ficamos absortos no rico universo do herói. De alguma forma misteriosa o traço de Jim Aparo nos captura e transforma um material que poderia ser alvo apenas de fãs em algo que vai além. Acho muito injusto quando tentamos analisar uma obra à luz do nosso tempo. Para que ela seja devidamente apreciada cabe sempre o exercício de contextualiza-la à época. Quando fazemos isso percebemos o quanto livros, discos e quadrinhos mais antigos crescem. Caso façamos esse exercício aqui, teremos um material que passará de muito bom para ótimo. Destaque para a decisão da Mythos em preservar as propagandas que saíram nas revistas originais à época de seus lançamentos, o que auxilia grandemente na imersão que comentei acima. O brinde (um anel do Fantasma em metal), além do papel escolhido para impressão são outras decisões acertadas.

Bem amigos... Estes foram meus destaques em minhas leituras de quadrinhos em 2020. Li muitas outras coisas, mas acredito que a matéria evidencia obras que precisariam ser conhecidas ou que mereceriam sua atenção. Claro que há sempre a questão do "gosto pessoal", mas no geral as HQs aqui apresentadas possuem qualidade com certeza! Grande Abraço é um Feliz Natal à todos!!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Pílula Gráfica #3: O Fantasma por Jim Aparo (2020)


Neste final de 2020 tive a grata surpresa de ler um lançamento da Editora Mythos que resgata o trabalho do célebre ilustrador Jim Aparo durante sua passagem pelo emblemático Fantasma. Conhecido do público brasileiro, sobretudo pela sua obra junto ao Batman, Aparo desenhou o Fantasma durante uma parte de sua estada na Editora Charlton Comics, mais especificamente de abril de 1969 à junho de 1970, compreendendo The Phantom 31 à 34 e 36 à 38 (todas integradas neste volume). De alguma forma misteriosa, o encadernado é muito envolvente. "Misteriosa" porque quando se lê essas histórias é possível verificar muito bem que são narrativas mais simples e ingênuas, mas de alguma forma, mesmo o leitor de 2020 é envolvido pela aura de mistério do Espírito-que-Anda. Acredito que boa parte deste envolvimento se dá pela arte de Jim Aparo, que tem um traço dinâmico, suave e ao mesmo tempo robusto. Sua representação da selva é ótima e seus quadros permitem fluidez à leitura. Mesmo que você não conheça tão bem o herói da Selva de Bengala, este seria uma ótima porta de entrada, já se você é um fã então já sabe da importância deste material. A edição da Mythos tem outros mérito que vão além do conteúdo. A começar pelo rápido, mas ótimo texto introdutório (não creditado na edição). Outro ponto é a manutenção das propagandas (no início de cada número) que saíram junto com as edições originais. São propagandas que possuem um forte efeito subliminar no leitor, fazendo-nos imergir no contexto da época. Por fim, ressalto o papel usado na impressão (parece-me papel pólen, mas não tenho certeza), que dá um efeito ao mesmo tempo nostálgico, de qualidade e vintage. O único ponto mais frágil é a colorização da obra, que às vezes peca na precisão e foco, principalmente nas primeiras histórias. Mas se você contextualizar isso à idade e importância da obra, talvez até vire um ponto positivo. Não posso deixar de lembrar da peça colecionável que veio junto com o encadernado: uma réplica do anel de metal usado pelo herói com sua marca. Excelente lançamento!



sábado, 28 de novembro de 2020

Nas Montanhas da Loucura - H.P. Lovecraft


Uma das minhas grandes e vertiginosas viagens de 2020 foi adentrar nos salões mentais de H.P. Lovecraft. Conhecido por uma legião de fãs, minhas informações acerca do escritor eram várias, porém apenas por terceiros. Aconteceu que acabou caindo um de seus contos (O TEMPLO) em minhas mãos ao ler a coletânea  Das Estrelas ao Oceano da Editora Martin Claret. A capacidade do escritor em produzir ecos de segredos milenares escondidos e insondáveis caiu como um bólido dentro de mim. O próximo e óbvio passo foi tirar da estante um outro livro do autor que há muito aguardava minha leitura, Nas Montanhas da Loucura. A edição da editora Hedra traz uma excelente e acdêmica Introdução de Guilherme da Silva Braga, Organizador e Tradutor do livro. Embora acadêmica, a Introdução é extremamente interessante e localiza bem o leitor dentro do Universo que permeia vida e obra de Lovecraft.


Escrito em 1931 mas rejeitado inicialmente, o livro foi mesmo publicado em 1936 na revista Astounding Stories. A obra mostra uma expedição ao continente Antártico, um dos lugares praticamente inexplorados à época. Narrado por um dos sobreviventes da expedição, a história cresce na perspectiva do estranho e inominável, uma vez que são encontradas ruínas colossais de uma metrópole no gelo. Mas uma metrópole estranha em sua arquitetura e idade, algo que antecede o aparecimento da espécie humana na Terra. Uma das grandes marcas de Lovecraft, e sobre a qual eu sempre havia lido, é a apresentação de seres cósmicos que, embora presentes em nosso imaginário mais rudimentar, realmente teriam sido reais. Essa experimentação de ideias do autor resgata o entendimento de que teríamos guardados em nosso DNA experiências e percepções de Eras passadas, daí nosso assombro diante desta realidade inominável.


Embora pareça um texto muito visto ao longo do século XX, estamos falando aqui da década de 30, ou seja, Lovecraft estava sendo pioneiro em uma narrativa que seria aproveitada ao extremo nas mídias vindouras. Mas a obra ainda teria algo a nos falar depois de quase um século de sua publicação? Minha resposta é sim. Isso porque mais interessante que os acontecimentos e desfecho da história (que são muito interessantes sem dúvida), é o frescor nas palavras de Lovecraft, que não escreveu apenas para contar um evento fantástico; o verdadeiro objetivo do autor transcende a história, ou seja, o que interessa é apresentar, nas entrelinhas, o mistério insondável que nos rodeia. E isso ele faz de forma poética, lírica e profunda ao conseguir colocar em palavras a sensação do ser humano diante do gigantesco, do imemorial, do desconhecido, do insondável e inqualificável. E foi exatamente esta capacidade de Lovecraft que me fisgou no conto O TEMPLO, que menciono no início do post.


Esta moldura narrativa que permeia a obra é que nos faz perceber o profundo e subliminar discurso do livro. O "fantástico" é uma ferramenta para apresentar sensações e questionamentos que o próprio autor tem, e que eu mesmo já tive acerca do que nos cerca. As questões primordiais são sobre como tudo pode ser muito maior que nós mesmos e o nosso ínfimo papel em tudo. Esta perspectiva nos abre portas para ressignificarmos os mitos e lendas à luz de uma memória humana primal, de reminiscências que sobraram dentro de nós. Uma palavra muito usada ao longo do livro é o termo "éon". Um éon é o que os geólogos chamam de a maior subdivisão de tempo na escala geológica. As Eras que conhecemos (ex.: Cenozóica, Mesozóica, Pré-cambriana...) compõem 1 éon. Isso quer dizer que a soma dos éons é aquilo que mais se aproxima da eternidade em termos de mentalidade humana. Os achados da expedição em Nas Montanhas da Loucura datam de éons ancestrais.


Há uma sutil sensação de perda e luto que permeia o livro... E para definir esta sensação as melhores palavras são da laureada escritora norte americana Joyce Carol Oates que escreve o seguinte na quarta-capa da edição da Editora Hedra:

"Existe uma grandeza melancólica e operística em Nas Montanhas da Loucura; uma curiosa poesia elegíaca de perda inefável, de desespero adolescente, e uma solidão existencial tão profunda que permanece na memória do leitor, como um sonho, por muito tempo depois que os rudimentos do enredo lovecraftiano se apagam" - Joyce Carol Oates.

Terminei de ler o livro já há algumas semanas, e os detalhes do enredo já começam a se esvair de minha mente, mas o que Joyce escreve acima é a mais pura verdade; ao lembrar de Nas Montanhas da Loucura sinto um sopro gelado de um vento antigo que tenta limpar as camadas mais profundas da minha mente em busca de segredos ancestrais escondidos...

sábado, 14 de novembro de 2020

Pílula Gráfica #2: Bowie - Stardust, Rayguns, Moonage Daydreams (2020)


Uma obra lançada em 2020 que, infelizmente, pareceu correr totalmente "por fora" do mainstream editorial foi Bowie - Stardust, Rayguns, Moonage Daydreams. Mesmo que não se tenha referências completas acerca de David Bowie e sua música, esta obra é essencial para qualquer fã ou estudioso do que aconteceu no fértil cenário fonográfico e cultural na 2ª metade dos anos 60 no Mundo. Escrita pelo fã Steve Horton, fiquei impressionado com a narrativa escrita e gráfica da obra, esta última pelo desenhista e também fã Michael Allred. Bowie não poderia ter recebido homenagem melhor ao ter sua vida contada de forma alinear e relativamente fragmentada. Todos os personagens encarnados em seus discos estão ali, Major Tom, o andrógeno Ziggy Stardust, Alladin Sane, Hallowen Jack, ... entre outras personas que erupiram do interior do inquieto músico. Steve Horton mostra o processo criativo de Bowie e a forma como ele enxergava sua música, ou seja, como um canal que transcendia a comunicação verbal ao transmitir de forma subliminar sentimentos e verdades incomunicáveis. Mesmo que o conhecimento do leitor sobre Bowie seja baixo, todo panteão da música sessentista está na obra em função dos diversos contatos que o músico teve com lendas como Lou Reed, Iggy Pop, Mick Jagger, Elton John, Alice Cooper... O tsunami Bowie inundou até mesmo outras praias culturais, como é mostrado, por exemplo, no curioso encontro do músico com a lenda do cinema Christopher Lee (o maior interprete de Drácula de todos os tempos, em minha opinião) e com o grupo inglês Monty Python. Ao ler Bowie - Stardust, Rayguns, Moonage Daydreams não há como não se deixar invadir pelo forte universo onírico, cósmico e lisérgico do artista. Um dos pontos altos de 2020!!






Bowie contempla (talvez em sua própria mente) as várias personas que viria a encarnar

sábado, 7 de novembro de 2020

O Mundo de Black Hammer de Jeff Lemire


Qualquer leitor de quadrinhos com um certo tempo de estrada sempre tem esperança de encontrar um novo roteirista que represente novamente os elementos que tanto nos encantam dentro da 9ª Arte. Especificamente dentro do segmento "super-heróis", muito já se tentou e, para mim, os maiores equívocos ocorreram quando o roteiro foi diminuído em detrimento da arte (anos 90), ou então quando quiseram usar de violência gratuita, mortes ou mesmo eventos cada vez mais cataclísmicos para angariar leitores. De vez em quando porém, determinados artistas entendem que o que fascina está no drama pessoal emoldurado por uma boa dose de aventura, mistério e porque não uma dose de violência desde que enquadrada em um contexto dramático. Jeff Lemire tem sido um roteirista que, sobretudo em seus trabalhos autorais, tem mostrado um talento incrível para criar e re-imaginar conceitos sob a perspectiva do mágico e fantástico. Black Hammer, série autoral de Lemire, foi publicada no Brasil pela editora Intrínseca em 4 volumes entre 2018 e 2020, e é uma série assim. Que respeita o passado super heroico das HQs, homenageia pessoas e personagens importantes e ainda assim entrega novos conceitos.


Seria muito difícil um fã de quadrinhos de super heróis se identificar de cara com a imagem acima, que parece muito mais relacionada com um quadrinhos de terror ou horror. Mas não se engane, Black Hammer é sim uma obra fascinante que tem tudo a ver com super-heróis. E quando falo super heróis me refiro ao conceito mais clássico do termo, ou seja, aquele ligado ao super herói da Era de Ouro e de Prata. Aquele herói sem as dúvidas que assolariam os super-seres nas Eras de Bronze e Moderna dos Quadrinhos. Quando comecei a ler Black Hammer fiquei de certa forma incomodado com uma coisa, a arte de Dean Ormston, um artista cujo traço está mais para o terror do que para as chamativas e coloridas imagens dos super-heróis. Mas eu não podia estar mais enganado. Logo passei a entender que a arte de Ormston é perfeita para a história, que apresenta o conceito do herói clássico de uma forma ligeiramente distorcida, e o traço de Ormston acompanha esse conceito dramático a partir de uma distorção estética. E isso dá a profundidade que Jeff Lemire quer aos dramas dos personagens. Dean Ormston é um desenhista que foi acometido por uma lesão cerebral durante seu trabalho ao longo da publicação de Black Hammer, e passou por um longo tempo de reabilitação até retomar uma funcionalidade motora que o permitiria continua-la. Por isso alguns trechos da história são desenhados por outros artistas. O leitor, porém, não vê a hora do traço de Ormston retornar ao longo da narrativa.


Abraham Slam, Menina de Ouro, Madame Libélula, Coronel Weird, Barbalien e a andróide Talky-Walky são os heróis de Black Hammer. O nome Black Hammer, aliás, pertence a um super herói que tem um importante papel na narrativa mas que está morto já desde o início da história. A sinopse básica gira em torno dos seis heróis acima que foram transportados, ao final de uma ferrenha batalha contra uma entidade maligna chamada Anti-Deus, à uma fazenda dentro de uma estranha realidade. Os heróis já estão naquele local há dez anos e não conseguem escapar dos limites daquele território. O herói Black Hammer foi o único que tentou escapar e morreu imediatamente ao atravessar o que parece ser uma barreira. Os personagens chegam a pensar que estão mortos, num purgatório, ou simplesmente foram condenados por algum motivo e sua pena seria permanecer naquele estranho lugar. Perto da fazenda há uma pacata cidade que nada mais é do que uma clássica representação das cidades interioranas dos EUA.


Cada personagem tem seu drama pessoal, como por exemplo o da Menina de Ouro, codinome da personagem Gail, que quando ganhou seus poderes ainda era uma menina. Ao pronunciar a palavra "Zafram", Gail ganha superpoderes. Em seu estado superpoderoso Gail é sempre uma menina, porém quando voltava ao normal seu corpo foi, com o passar dos anos, envelhecendo normalmente. O problema é que Gail já tem 55 anos, e foi aprisionada na fazenda em seu corpo superheróico de menina. Para manter as aparências ela tem que se passar por neta de Abraham Slam, sendo que na verdade já é uma senhora. Outros dramas também aparecem, como o do marciano Barbalien que é homosexual e tem uma vida marcada pela solidão de amores não correspondidos. Uma das personagens que mais gostei foi Madame Libélula, que está sempre reclusa em sua cabana dos horrores.


É impossível não identificarmos nesses personagens os clássicos herois ou vilões da Marvel e DC. Barbalien é o Caçador de Marte, Menina de Ouro é uma versão de Shazam, Abraham Slam é uma mistura de Capitão América com Demolidor, o Coronel Weird é, sem dúvida nenhuma, uma junção de Adam Strange com os exploradores espaciais dos pulps. O próprio Anti-Deus é como se fosse Darkseid. A questão é que Lemire faz questão que vejamos essa similaridade em seus personagens. Ele emula, aliás, até mesmo palavras e uniformes para que não tenhamos dúvida de que seus heróis são referências aos clássicos. E quanto mais fazemos esta identificação, mais a histórias ganha contornos interessantes e estranhos. Não posso deixar de falar também das diversas referências que saltam de cada página. O leitor poderá ver diversos outros personagens e obras do mundo "nerd" representados. Aqui vai alguns deles: personagens da Saga do Quarto Mundo de Jack Kirby; os Perpétuos de Neil Gaiman; os clássicos do horror das revistas Creepy e Eerie; a fantástica série de Rod Serling de 1959 The Twilight Zone (Além da Imaginação no Brasil)... entre outras referências que emolduram a história e conferem densidade à trama.

Poster by Conner Herbison

De uma maneira muito curiosa passamos a aceitar a estranheza dos 6 heróis de Black Hammer, que vão ganhando cada vez mais veracidade e vida própria ao longo da trama. Isso porque Lemire nos narra, em forma de flash-back, um pouco do passado de cada um. À semelhança de outras obras do autor, caso de O Soldador Sub-Aquático, Black Hammer possui uma melancolia sutil em cada cena. Essa sutil tristeza não é gratuita, e o leitor é capaz de perceber densidade nela. Isso é talvez um dos segredos da obra. Não pude deixar de lembrar de algumas obras de Alan Moore, como por exemplo Supremo - A Era de Ouro e Supremo - A Era de Prata. Duas obras que possuem a mesma homenagem às HQs clássicas e são recheadas de uma releitura adulta de conceitos infanto-juvenis. Apesar da aparente similaridade, no entanto, Lemire tem seu brilho próprio e nunca descamba para o negativismo terminal e inescapável. Talvez por isso, haja uma docilidade muito concreta na sua narrativa.

Black Hammer homenageira diversos aspectos clássicos da 9ª Arte.

Recentemente fiquei sabendo que Jeff Lemire aceitou fazer um crossover entre os universos de Black Hammer e da Editora DC. Sempre fui muito avesso à crossovers entre universos e editoras. Eles sempre me cheiraram como "caça-níqueis". Mas fiquei muito curioso acerca deste porque Lemire não precisava tê-lo aceito, sobretudo em função do lugar consolidado que ocupa atualmente no mundo dos quadrinhos. Por isso estou muito interessado. Black Hammer ganhou o prêmio Will Eisner de melhor série original em 2017. Merecido!!

domingo, 25 de outubro de 2020

O Homem Que Ri - Victor Hugo


Embora criticada (justamente ou injustamente não sei ao certo dizer) por algumas traduções, a Editora Martin Claret trouxe já há algum tempo ao Brasil uma nova edição do livro "O Homem Que Ri" de Victor Hugo (Os Miseráveis, O Corcunda de Notre Dame). Lançado em 1869, o livro foi adaptado para o cinema em 1928 no filme homônimo "O Homem Que Ri". No filme, tal como no livro, vemos o drama de um homem (Lorde Gwynplaine) que, por ordem do Rei, passa a ostentar a estranha deformidade de um imutável sorriso. O papel de Gwynplaine no filme de 1928 ficou eternizado pela atuação do ator alemão Conrad Veidt (Hans Walter Konrad Veidt). A atuação de Veidt é tão assustadoramente perfeita que inspirou Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson em 1940 a criarem outro personagem que se manteve relevante até hoje por representar o caos, a anarquia e a distopia: O Coringa (The Joker) da editora DC. As semelhanças físicas entre Veidt e os conceitos originais do Coringa são incríveis. Mas para além das curiosidades, "O Homem Que Ri" faz jus ao legado de Victor Hugo como escritor universal que sempre conseguiu expor as hipocrisias, contradições e potencial de redenção do ser humano. Parabéns à ediotra Martin Claret!!








Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...