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domingo, 10 de setembro de 2023

Pílula Gráfica #31: Crime e Poesia - (2022)

















Redenção é um dos processos ou atos mais almejados pelo ser humano. Pelo menos por aqueles que guardam dentro de si uma centelha de indagação acerca do sentido de tudo. A história narrada em Crime e Poesia parece saída de um daqueles enredos inverossímeis que eventualmente encontramos. Ela trata de muitas coisas, mas para mim trata de redenção. Crimes, dentro de crimes que se somam e se somam e que, ainda que de forma impossível, encontram redenção em um processo difícil de auto aceitação, injustiça e abandono. A história do homem chamado Matt Rizzo que, através do filho, Charlie Rizzo, sobreviveu para ser contada e descoberta. Uma história com raízes no bárbaro crime cometido na primavera de 1924 pelos jovens aristocratas Nathan Freudenthal Leopold, Jr. e Richard Albert Loeb, mais conhecidos como Leopold & Loeb. Dupla que sequestrou e assassinou com requintes de crueldade um menino de 14 anos de idade (Bobby Franks) nos EUA. Um crime que ressoou por décadas no imaginário das pessoas e acabou por atingir de certa forma também Matt Rizzo. Crime e Poesia apresenta de forma muito clara e honesta o labirinto pelo qual andamos em nossa existência  e as escolhas que fazemos. Nesse labirinto podemos, entretanto, encontrar as migalhas deixadas por outras pessoas que já o trilharam e sabiam o quão difícil é aprender a ser feliz com o que se tem e com o simples. No caso de Matt Rizzo, Homero, Virgílio, Shakespeare, Milton, Whitman, Emerson... Matt aprendeu do jeito mais difícil a viver o simples e a se maravilhar com o comum.

"Destituído de todos os sinais vitais, ele ficou parado ao lado da Correnteza silenciosa, como um Navio encalhado, separado de todos os laços terrenos.

Enquanto estava suspenso, além da revogação do tumulto mortal da vida, uma mão esticada gesticulou para ele da outra margem e o impulsionou a avançar, pela Vontade Divina, e ele cruzou o Rio silencioso com os dois braços esticados para quem gesticulara; e um abraçou o outro com força;

a Morte emergiu levando o fardo dos espólios corporais; Scorto, despojado de sua carcaça mortal, emergiu belo e imaculado, com os mesmo traços, porém mais perfeito e mais jovem que qualquer obra de Arte ou Escultura poderia conceber.

Transfigurado, a nuvem de um homem sem pecados, a testa se deslocando para cima, Ele se elevou, alcançando os jubilosos prados do Paraíso eterno."

Dos Escritos de Matt Rizzo

sábado, 2 de setembro de 2023

Pílula Literária #14: Ed & Lorraine - Demonologistas


Difícil não se deixar envolver pelos relatos do casal Ed & Lorraine Warren. Embora a maioria das pessoas os conheçam por terem sido interpretados no cinema por Patrick Wilson e Vera Farmiga na franquia Invocação do Mal, Ed & Lorraine (ambos já falecidos) colecionaram experiências extremamente bizarras (para dizer o mínimo) ao longo do século passado desde meados dos anos 1940. Uma verdadeira mítica se formou ao redor do casal e por mais que existam relatos periféricos também um pouco estranhos acerca da vida conjugal do casal, o fato é que ambos presenciaram e foram participantes ativos em diversos casos singulares envolvendo fenômenos para os quais a ciência literalmente se esquivou por falta de ferramentas e abordagens capazes de trazer explicação para eles. A própria profissão que os dois possuíam, Demonologistas, é pouco ortodoxa. No caso dos Warren, entretanto, a própria estrutura oficial da Igreja Católica Romana (instituição conhecida pela seus protocolos administrativos e hierarquia sólidos) reconhecia oficialmente a função dos dois nesta área. Ed Warren era, por exemplo, o único demonologista não padre reconhecido pela instituição. Esta informação coloca as experiências do casal em outro nível em relação à muitas outras que, mesmo verdadeiras, poderiam trazer maiores contestações. O livro do jornalista Gerald Brittle, conhecido por seus relatos jornalísticos acerca do tema, é o primeiro de uma série de quatro lançados pela DarkSide Books sobre o inusitado casal. Em Ed & Lorraine - Demonologistas, Brittle se debruça sobre a dinâmica e dia a dia do demonologista. Com muito material de entrevistas, o autor transcreve respostas dadas pelo casal em palestras e em particular acerca de diversos casos vivenciados e acerca da natureza dos fenômenos, fazendo desde o início do livro uma distinção entre ocorrências fruto de "fantasmas" (espíritos humanos) e espíritos preternaturais (espíritos não-humanos, ou seja, demoníacos). O livro traz também o resumo de casos que foram, nos demais livros, abordados com mais detalhes. Mas neste volume, os resumos servem para ilustrar a dinâmica e modus operandi dos fenômenos. Alguns relatos são extremamente críveis, outros, desafiam nossa capacidade de aceitação em função da natureza quase que holywoodiana. Mas talvez o impacto maior não seja em função da excêntrica natureza das ocorrências, mas sim em função do desespero, agonia, angustia e total fragilidade que causam em pessoas comuns vítimas destes atos sobrenaturais. Ao ponto do próprio leitor do livro, desejar profundamente que os Warren sejam rapidamente acionados pelas vítimas para que consigam ter o mínimo de alívio. Ao imergirmos na angustia das pessoas, os Warren ganham uma dimensão quase que heroica aos nossos olhos uma vez que passam a ser os únicos, entre médicos, cientistas, psicólogos, homens da ciência em geral, a terem algo a oferecer de concreto para reduzir ou eliminar por completo aquilo que busca destroçar o núcleo familiar. Ed & Lorraine Warren - Demonologistas é um livro lançado pela primeira vez em 1980, época em que o casal, já maduro, possuía ampla e ativa participação nos fenômenos. Para aqueles que gostariam de um certo aprofundamento no tema, leitura obrigatória.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Plataforma de Lançamentos #3 - Clássicos Sci-Fi: Anos 50 Vol. 03 (2023) - Versátil Home Vídeo


Com uma curadoria incrível ao longo da última década a empresa Versátil Home Vídeo presenteou a cinefilia brasileira com verdadeiras pérolas da 7ª Arte. Com diversas coleções temáticas e a presença constante de extras que amplificam e dimensionam a obra de forma excepcional em seus lançamentos, desta vez foi a vez de desdobrarem a já tradicional Coleção Clássicos Sci-Fi, que passou a contar com este novo braço, a Coleção Sci-Fi Anos 50. Com lançamento previsto para agosto de 2023, o volume 3 desta série trará filmes com a assinatura de diretores como Jack Arnold e Roger Corman. Dona de uma inconografia única, a década de 50 amplificou medos e desejos da sociedade do pós 2ª Guerra Mundial. Futuros platinados, distópicos, catastróficos, ou situações da época sob o viés da ciência, eram abordados e traziam por vezes subtextos genuínos e interessantes. Por ser um gênero no qual os grandes estúdios ainda não apostavam muito, foi necessário a passagem dos anos 60 para que as majors apostassem um pouco mais nesse gênero que vinha se amadurecendo e se decantando, a ponto de vermos, em 1968, o lançamento de 2001 - Uma Odisseia no Espaço. A suspensão da descrença e a capacidade de maravilhamento tão usadas no passado pela minha geração em filmes de Ray Harryhausen por exemplo, tem sido produto em falta na atual geração que se preocupa mais com a qualidade do CGI do que com a incrível possibilidade de transposição que o cinema nos dá. Infelizmente Sommeliers de CGI abrem mão do contexto imaginativo e abraçam de forma contundente a tecnicidade cinematográfica. Para pessoas assim, Clássicos Sci-Fi Anos 50 tem muito pouco a acrescentar. Entretanto, caso você ainda consiga contextualizar os tempos, e se posicionar de forma genuína e sincera, ainda que por 1 hora e meia, dentro do contexto histórico de uma década, no caso os anos 50... bom, nesse caso você terá experiências extremamente interessantes, conseguindo inclusive retornar para os anos 2020 carregando elementos raros do passado. Elementos que lhe darão estofo para entender e re-significar o mundo atual. Experimente... faça essa viagem equipado com as ferramentas que dei acima e você poderá se surpreender.

domingo, 23 de julho de 2023

Pílula Gráfica #30: A Floresta - (2022)

Difícil é exprimir em palavras algo que não foi concebido para ser comunicado por meio do veículo escrito ou falado, mas apenas pelo imagético. Nesses casos, a tentativa possivelmente resultará na corrupção da mensagem, ou então na sua transformação em outra coisa, geralmente de menor valor. Assim, minha tentativa de trazer aqui um pouco do que foi minha experiência com a A Floresta de Thomas Ott será apenas uma humilde tentativa. Famoso por seus quadrinhos mudos lá fora, o suíço Thomas Ott possui dois títulos seus publicados no Brasil, ambos pela DarkSide Books, Panopticum e A Floresta. Seria muita pretensão de minha parte comunicar a profundidade que Ott alcança em A Floresta ao tratar do tema "morte". Para quem possui uma relação um pouco mais profunda com a natureza, especificamente com a mata ou floresta, reconhecer esse espaço como veículo ancestral de sabedoria silenciosa é algo relativamente fácil. Ott usa o elemento silencioso do "verde", sua hermética beleza e fascínio "quase" místico, para contar uma história que, sem uso de palavras, desce aos porões da dor existencial da perda de um ente muito próximo. O vazio, a dificuldade em se reconhecer na nova realidade a partir da "ausência", a sensação da correnteza da vida de repente se estagnar e o tempo se contrair... lugar este já visitado por aqueles que experimentaram uma perda. A história, narrada por meio das imagens produzidas pelo autor, com suas nuances, concretudes e subjetividades de traço, catalisa a revisitação a este lugar de perda e ausência. Uma história que usa a floresta como metáfora (ou talvez não) para a descida ao lugar da dor interior. Acompanhamos um pequeno garoto que se embrenha na mata para fugir da intolerável ausência produzida pela morte. Nesta pequena pérola, Thomas Ott alcança a difícil tarefa de produzir no outro, o acesso às camadas profundas do afeto que aquece, mas ao mesmo tempo dói. Reconheço em A Floresta, imagens profundas deste lugar de dor, solidão e, ao mesmo tempo, redenção...

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Plataforma de Lançamentos #2 - História do Oeste (2023) - Editora Saicã


História do Oeste diz respeito à epopeia da família MacDonald ao longo de gerações. Escrita pelo grande roteirista italiano Gino D´Antonio, a obra teve duas passagens pelo Brasil. Primeiramente pela Editora EBAL entre os anos de 1970 à 1987 e, depois pela Editora Record entre os anos de 1991 à 1995. Este novo lançamento da Editora Saicã, entretanto, busca resgatar a série na íntegra, em cores e em capa dura, além de trazer um acréscimo de 200 páginas feito pelo autor entre as edições de números 1 a 3. A proposta da Saicã é, por meio de financiamento coletivo via Catarse, trazer a Saga inteira com seus 75 números com uma programação de publicação de 2 histórias por volume, totalizando, portanto cerca de 37 edições. A narrativa inicia-se nos primeiros anos do século 19 (por volta do ano de 1800) e tangencia importantes eventos históricos reais com a partição de personagens históricos tais como General Custer, Wild Bill Hickok, Buffalo Bill, Calamity Jane, Kit Carson, Jim Bridger, Billy the Kid, Geronimo e Cochise, entre outros. A arrojada proposta da Editora tem tudo para ser um sucesso considerando a riqueza do material. Os leitores mais antigos possivelmente leram algo da obra em sua passagem pela Ebal quando então era lançada sob o nome de Coleção Epopeia-TRI. Conforme explica o Editor da Coleção Neimar Nunes, o nome Epopeia-TRI foi dado em função dos volumes serem lançados trimestralmente à época e pelo fato do Brasil ter sido campeão em 1970 (ano do início do lançamento pela Ebal) na Copa do Mundo de Futebol no México. O lançamento busca atender não apenas o fiel público do gênero Western, mas também fazer conhecer para as novas gerações este excelente material que, para além da representação histórica legítima, é leitura de qualidade e imprescindível. A campanha de financiamento dos dois primeiros já ultrapassou a meta no momento em que escrevo esta matéria, mostrando a força do material. Um diferencial dos lançamentos de editoras como a Saicã, é o fato das pessoas envolvidas na publicação do material serem fãs e conhecedoras do assunto, o que confere à publicação um apuro e fidelidade acima da média do que é visto em outras editoras. Algo que, infelizmente, não ocorre em editoras brasileiras de grande porte que, acabam vendo o material apenas como um produto, o que, por conseguinte, o deixa 100% suscetível à fenômenos mercadológicos. Isso implica em cancelamentos ao menor sinal de oscilação em vendas e no lucro. Infelizmente o colecionador pôde ver isso acontecer em recente caso envolvendo o material do roteirista Jeff Lemire (Royal City Volume 1: Segredos em família) que foi descontinuado por uma grande editora. História do Oeste volta ao Brasil pela terceira vez, porém agora com um tratamento especial. Conheça e campanha!!

Link para o Projeto no Catarse!

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Plataforma de Lançamentos #1 - Cisco Kid (2023) - UCHA Editora



O mercado nacional de quadrinhos vive uma cena talvez nunca vista. Resgates históricos, variedade de gêneros, títulos, autores, licenciadores... Um movimento que em algum momento terá que ser abordado com a devida paciência considerando suas múltiplas causas, dentre elas o aparecimento de inúmeras editoras catapultadas pelas plataformas de financiamento coletivo. Diante desta profusão de lançamentos, alguns merecem destaque, e este aqui é um deles. José Salinas, ilustrador argentino da primeira metade do século 20 foi um gigante e, finalmente recebe em nosso país o tratamento que merece. Um de seus personagens volta ao Brasil em edição caprichada pelo Selo Editorial Super-X da Editora UCHA. Atualmente em campanha na plataforma de financiamento coletivo CATARSE, o lançamento traz de volta Cisco Kid, um dos grandes personagens dos quadrinhos norte-americanos que teve, sob o magnífico traço de Salinas, sua encarnação mais fiel. O volume, com acabamento de luxo e formato horizontal para conseguir dimensionar as tiras de Salinas conforme foram originalmente concebidas, trará a três primeiras histórias do herói (Lucy, Flor Rubra e Belle) publicadas em 1951. Além do óbvio resgate histórico, a arte de Salinas nunca foi apresentada no Brasil com o grau e apuro aqui demonstradas. Fruto da restauração a que foi submetida por um dos maiores restauradores do mundo, Manuel Caldas que, infeilizmente só conheci agora. Entretanto, Caldas esteve por trás da restauração das pranchas de Hal Foster em Príncipe Valente além da restauração de histórias de Tarzan, Krazy Cat entre outros. A Editora UCHA tem por trás Francisco Ucha, nome envolvido com a recuperação de grandes clássicos nacionais, tendo já lançado obras como Uma Aventura na Independência, Tony Carson - O Chacal entre outras. Na página de financiamento coletivo dedicada ao lançamento de Cisco Kid é possível vislumbrar um aperitivo da arte de Salinas e seu Cisco Kid. Realmente magnífico. A partir de hoje ainda restam 32 dias restantes para se apoiar o projeto. Na página de apoio é possível adquirir outros lançamentos da editora, dentre os quais os dois que citei acima (que já tenho em minha coleção) e ainda outro incrível álbum com a arte de outro gigante, Rodolfo Zalla. Neste álbum, Zalla desenha Zorro em uma HQ que sobreviveu à destruição dos originais das outras aventuras do personagem, com roteiro de Primaggio Mantovani. Como promessa, a Editora espera trazer ainda este ano de 2023 outro clássico, as tiras de Jhonny Comet com arte de Frank Frazetta. Visite o Projeto e confira a por si mesmo a grandeza do mestre Salinas.

Link para o Projeto no CATARSE.


quinta-feira, 13 de julho de 2023

Pílula Gráfica #29: Júlia - Especial #1 - (2022)


Vencido pelo cansaço a partir da opinião da esmagadora maioria de pessoas pelas quais tenho profundo respeito, e movido pela curiosidade de conhecer um segundo personagem, além de Ken Parker, de autoria do italiano Giancarlo Berardi, finalmente me dobrei à ideia de ler algo da criminóloga Júlia Kendall. Uma personagem que à princípio, sempre esteve na total periferia de meu radar, exceto pelo seu rosto inspirado na atriz Audrey Hepburn. Após o sucesso de Berardi em Ken Parker (publicado originalmente na Itália entre 1977 e 1984) o autor buscou novos horizontes. Nessa busca, aprofundou-se no ambiente hermético e visceral da criminologia. Deste período emergiu Júlia Kendall. Júlia é formada em criminalística e possui como motivação máxima entender os desejos, motivações, impulsos e objetivos de homicidas. Em outras palavras, entender os caminhos obscuros que a mente humana pode tomar. De aparência enganadoramente frágil, a personagem é dotada de grande talento investigativo e trafega com desenvoltura por ambientes insalubres e psiquicamente instáveis. Com esta premissa Berardi fez de novo! Trouxe qualidade, inovação e dramaticidade ao formular com brilhantismo o universo de Júlia Kendall. Obra que efetivamente fascina, envolve e coloca em foco o perigoso mas atraente mundo da mente humana. Cheia de referências culturais, a série realmente precisaria ser mais conhecida. Minha (recente) porta de entrada foi o Nº 01 de Júlia Especial. A personagem é publicada no Brasil pela Editora Mythos atualmetne, e estrela 3 séries em nosso país (01 delas já concluída). A clássica Júlia - Aventuras de Uma Criminóloga (Formato Italiano), a primeira publicada na Itália a partir de 1998 que contou com 200 números. A continuação Júlia - Aventuras de Uma Criminóloga, e a já concluída Júlia - Especial (foto) que contou com 10 volumes. Todas estas séries passíveis de serem encontradas no site da Editora Mythos ou na loja física Mundo Mythos à Rua Augusta 1371 sobreloja 01 - São Paulo - SP. A série Júlia - Especial narra a juventude da personagem, ainda na faculdade, escolhendo seu caminho como investigadora criminal. Ao ler este Nº 01 pude vivenciar todo impacto da qualidade do material. A personagem possui múltiplas camadas e, merecidamente, uma legião fiel de fãs. Deveria ter mais projeção do que vemos e mais análises de seu material que, assim como Ken Parker, fura completamente a bolha mainstream das publicações mensais da 9ª Arte.


terça-feira, 11 de julho de 2023

Pílula Literária #13: O Coração das Trevas


Parece haver, escondido no espaço profundo do homem, um local obscuro capaz de ouvir chamados (audíveis ou não) advindos da natureza mais primitiva interna e/ou externa. Na sucessão de eventos aos quais somos submetidos, é possível caminharmos por territórios nos quais a "razão" é simplesmente obliterada. O polonês Joseph Conrad em 1890, então com 32 anos e empregado de uma empresa extratora de Marfim, embarca para o Congo. A viagem fazia parte da política expansionista da monarquia Belga tendo como objetivos o envio do progresso, cultura, paz e prosperidade para a região. Apenas mentiras para encobrir a espoliação do local, conduzida à força e às custas de sangue, escravidão, violência e crueldade. Após a viagem, Conrad deixa a empresa com profundas marcas que o levariam a escrever em 1899 O Coração das Trevas. Livro no qual narra a experiência do Capitão Marlow nas profundezas de floresta semelhante à que Conrad visitara. Mais que um relato de expedição, a obra aprofunda elementos da psique humana quando sujeitos à barbárie e à ambientes inóspitos. Além disso, a obra é verdadeiro manifesto acerca da brutalidade e futilidade dos valores que, em geral, movimentam a trajetória humana. O personagem principal do livro, Marlow, embrenha-se nas florestas em busca do homem chamado Kurtz, funcionário desaparecido, visionário da empresa e expoente da exploração de marfim. A trajetória de Marlow é tão espiritual/existencial quanto física, à medida em que se aprofunda mais e mais nos espaços obscuros da floresta com seu barco a vapor na companhia de escravos e funcionários da companhia. Adaptado para o cinema em 1979 por Francis Ford Coppola, o filme Apocalypse Now transpõe as selvas do Congo para as do Vietnã, ambientando a irracionalidade da exploração do Marfim para a da Guerra. O filme, que quase levou Coppola ao suicídio, que proporcionou um infarto do miocárdio ao ator protagonista (Martin Sheen) e quase enlouqueceu toda a equipe à época, foi sucesso de público e crítica. Entretanto trouxe uma experiência de loucura e desconexão com a realidade, muito parecida à de Conrad, à todos aqueles que viajaram para as florestas das Filipinas para as gravações. A edição que li, da LP&M Pocket, estava há muito tempo em minha pilha de leitura, muito embora exista edição com nova tradução pela DarkSide Books. O Coração das Trevas lança luz sobre os cantos escuros da alma humana e converte-se em um Clássico da Literatura por transformar um relato de expedição, na mais verdadeira e assustadora descrição do interior humano.

Joseph Conrad

sábado, 8 de julho de 2023

Pílula Literária #12: Assombrações do Recife Velho


Em 2010 assisti à montagem da peça Assombrações do Recife Velho pela companhia de teatro Os Fofos Encenam. A experiência foi como estar dentro de um "sonho" uma vez que o pequeno local em que a peça foi encenada no Bairro da Bela Vista em São Paulo pareceu se transmutar em um espaço infinito. Ali percebi se remexer dentro de mim lembranças da infância na Fazenda Santa Bárbara no Mato Grosso do Sul. Fazenda gigante e cheia de mistérios. A sensação de estar acessando forças ancestrais durante a peça foi intensa. Principalmente durante o ato final durante o qual ouvimos Vale do Jucá do músico Recifense Siba, música que funciona quase como uma invocação do Brasil profundo. Desde então o livro que deu origem à peça entrou para meu radar. Passados muitos anos finalmente li a obra original de Gilberto Freyre. Lançado em 1955, o livro é uma coletânea de causos catalogados por Freyre com a ajuda de um repórter que trabalhava no jornal no qual Freyre era Diretor (período 1928 à 1930). Registrados a partir da entrevistas, a obra é fonte de relatos estranhos, misteriosos e cheios de elementos culturais e sobrenaturais. A experiência da leitura cresce à medida em que o leitor permite que sua mente se abra para a possibilidade de existência de elementos inexplicáveis. Freyre, muito mais conhecido pelo seu livro Casa Grande e Senzala, consegue equilibrar os relatos a partir de uma escrita que, em nenhum momento, desacredita ou deslegitima os ocorridos. Esse respeito com que trata o material mostra que: ou 1) ele acreditava no que ouvira; ou 2) valorizava os relatos na perspectiva cultural como espelhos da sociedade em que crescera; ou 3) os dois. Esta abordagem de Freyre foi uma das grandes gratas surpresas que tive porque entendo que relatos populares merecem respeito de nossa parte, independente da posição em que ocupamos nesta nossa atual Era na qual, equivocadamente, muitos expressam certo desprezo por tudo aquilo que a tecnologia não toca. Na verdade, o homem desnudado de sua roupagem tecnológica, continua sendo o frágil espécime que sempre fora diante dos mistérios do entorno. E é isso que nosso tempo acaba querendo encobrir com suas traquitanas tecnológicas e sua falsa sensação de comunidade de redes sociais. No fim, aquilo que Freyre traz no livro ainda está à espreita, pacientemente esperando nossa frágil ilusão moderna se dissolver.

Para maiores conhecimentos acerca do tema indico fortemente:


domingo, 2 de julho de 2023

Pílula Gráfica #28: Ken Parker #4 - (2021)





A Coleção Ken Parker da Editora Mythos é talvez uma das melhores coleções de quadrinhos sendo publicadas atualmente. A saga do personagem é um retrato vívido e real do Oeste Americano. Suas tensões raciais, política, injustiças... Se você está ouvindo falar pela primeira vez de Ken Parker, decididamente você deveria conhece-lo. A atual coleção da Mythos é a melhor opção depois de anos de publicações descontinuadas com as histórias do personagem. No momento em que escrevo estas palavras, a coleção já se encontra em seu volume 13. Nesta postagem gostaria de comentar o volume 4, no qual finalmente temos a conclusão da caçada que Ken Parker empreende contra o mercenário Donald Welsh, assassino do homem que poderia ter impedido uma guerra sangrenta entre brancos e índios, Ely Donehogawa, assassinado na história Homicídio em Whashington (vol. 02). O que seria apenas uma caçada por um homem desprezível, transforma-se em algo muito maior nas mãos de Giancarlo Berardi. O volume 4, assim como os demais volumes traz duas histórias completas. Na primeira delas (Sob o Sol do México) Ken caça sua nêmese até os territórios mexicanos e, durante a viagem conhece personagens que emolduram adequadamente a vida real. A prostitua adolescente agenciada e explorada pelo tio, um casal de saltimbancos (Carmem e Roman) que possuem ideais revolucionários. Histórias tragicômicas que tangenciam o caminho de Ken Parker. Embora se esforce muito, Donald Welsh escapa, forçando Ken Parker a continuar sua caçada em São Francisco. Ali começa a 2ª história (Golpe em São Francisco). Um relato no qual Berardi sequer mostra o protagonista (Ken Parker) nas primeiras 40 páginas da história. Na verdade o roteirista usa esse tempo para desenvolver a personalidade do facínora Welsh, e introduzir personagens de apoio extremamente interessantes, a golpista Donna Ashford e o dentista Jack Boots. O leitor por um pequeno momento se vê simpatizando com o vilão ao ser construídas novas camadas dramáticas a ele. Entretanto, Berardi é perfeito nesse aprofundamento, pois não alivia em nada os métodos cruéis de Welsh. Ken Parker será, sem dúvida, um destaque entre minhas leituras de 2023! 


sexta-feira, 9 de junho de 2023

Pílula Gráfica #27: Trilogia Gatilho (2021)


Com arte do brasileiro Pedro Mauro, Trilogia Gatilho é um Western que vai além da costumeira narrativa de vingança do gênero. Envolve a violência que a tudo traga ao seu redor, amarrando pessoas a destinos impossíveis de serem transcendidos. O roteiro de Carlos Estefan nos leva a uma viagem que não se resume a homenagens aos faroestes spaguettis de Leone e Corbucci. Essas homenagens estão ali, entretanto, a força e vigor da história dá vida própria à obra. Podemos facilmente encontrar ecos de Clint Eastwood e seu pistoleiro sem nome, do Django de Franco Nero, da harmônica do personagem de Charles Bronson e de uma onipresente mosca, ambos de Era uma Vez no Oeste, de planos cinematográficos que nos envolvem como se estivéssemos vendo um Bang Bang nas telas. A história segue a vida de um pistoleiro (também sem nome), desde antes de seu nascimento, até seu violento ocaso. Mauro e Estefan fazem uma narrativa que intercala passado, presente e vislumbres do futuro da vida do personagem central, sem deixar o leitor perdido entre esses momentos, mas sim potencializando a história com o uso deste recurso narrativo. Composta de 3 segmentos, Gatilho, Legado e Redenção, o desfecho final da Trilogia não alivia para o leitor. Na verdade pelo contrário, re-significa o termo "redenção" para algo além do final feliz que muitas vezes atribuímos ao termo. Tive a alegria de ouvir Pedro Mauro em um podcast recentemente e, em função disso, minha leitura da Trilogia foi enriquecida pelos apontamentos do desenhista. Artista na estrada desde os anos 70, Mauro retornou aos quadrinhos a partir da década passada depois de um longo período trabalhando no meio publicitário. Apesar disso, toda bagagem e amor pelo gênero western estão vivas e depuradas pelos seus anos de trabalho. Com uma carreira sólida, Pedro Mauro possui importante trabalhos pela editora italiana Bonelli. Um valoroso artista que trouxe, ao lado de, uma pérola do Faroeste para alegria de veteranos e uma excelente oportunidade para novos leitores conhecerem o gênero em toda sua grandeza narrativa!!


domingo, 14 de maio de 2023

Pílula Gráfica #26: Tex Graphic Novel #2 - Frontera! (2016)


A Coleção de Graphic Novel do Tex (Editora Mythos) possui a proposta de trazer abordagens diferenciadas do famoso ranger. À princípio havíamos pensado que a série tinha sido cancelada no número 11 no Brasil com a excelente história Snakeman de dezembro de 2021. Entretanto, vimos chegar às livrarias e comic shops do Brasil mais um volume, o de número 12, Águas Negras. Estou cada vez mais convencido que esta série é excelente em todos os sentidos. Digo isso pelos volumes que já li, a anteriormente mencionada Snakeman (Nº 11) e a de número 01, O Herói e a Lenda. Frontera! (Nº 02) tem todos os elementos de um excelente Western. Porém, vai além ao mostrar Tex em todos seus atributos, com destaque à sua engenhosidade ao lidar com situações aparentemente sem solução, sempre um passo à frente dos seus inimigos, sempre com um plano mais amplo e criativo. Elementos como esse fez do personagem quem ele é, ou seja, alguém que avançou do estereótipo comum dos heróis do Western. Nesta história temos um Tex que luta ao lado de uma mulher magnífica, irascível e indomável em uma luta por justiça e vingança pelo assassinato do pai. Questões periféricas, mas não menos importantes permeiam a história: a hipocrisia do homem branco, a violência das relações humanas, o orgulho indígena sempre tratado como lixo pelo homem branco... E em meio a tudo isso, alguém que busca justiça e igualdade, nesse caso Tex. Por se passar próximo à fronteira dos EUA com o México, é impossível não lembrar do Westerns Italianos sessentistas que tiveram este cenário como pano de fundo. A arte de Mario Alberti é de encher os olhos com seus planos intimistas e ao mesmo tempo grandiosos. O termo Graphic Novel vem sendo usado há muitos anos como sinônimo de um simples compilado de histórias sequenciais. Entretanto, a ideia não é essa. O que se espera desse tipo de publicação é uma visão diferenciada de um personagem ou grupo. O aspecto autoral é outro fator marcante nas Graphic Novels, trazendo uma visão distinta de um determinado autor acerca do universo do personagem (ns). Tex Graphic Novel atende a esses critérios, circunscreve o personagem e delimita muito bem o aspecto autoral. Se dependesse de mim a Editora Mythos deveria continuar avançando com esta série!!

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Pílula Gráfica #25: Vampiros da Meia-Noite - (2022) - Pérola perdida do Cinema de Horror resgatada!


Um ator capaz de se metamorfosear em qualquer monstro ou personagem, um filme perdido de 1927 que viria a se tornar o Santo Graal de estudiosos e cinéfilos engajados em restaurar momentos-chave da 7ª arte... O ator seria Lon Channey, e o filme seria Vampiros da Meia-noite (London After Midnight - 1927). Dirigido pelo cultuado por uns, esquecidos por outros, Tod Browning (Drácula (1931) e Freaks (1932)), London After Midnight foi um filme do cinema mudo que se perdeu em um incêndio que destruiu parte dos Estúdios da MGM em 1967, queimando a única cópia conhecida. Embora este tenha sido o destino do filme, muitos alimentam esperanças de descobrir outra cópia esquecida em algum galpão ou estúdio. Em cima do mito e aura que tangenciam a obra, dois artistas, Enrique Alcatena (ilustrador) e Gonzalo Oyanedel (jornalista), se debruçaram sobre o roteiro original do filme, que era baseado no conto "The Hypnotist" do próprio Browning, e conseguiram transferi-lo para uma adaptação em quadrinhos. Assim, por iniciativa das Editoras Skript e Quadriculando, chegou ao Brasil, via financiamento coletivo, a obra em quadrinhos Vampiros da Meia-Noite (nome dado ao filme no Brasil). A HQ traz a história que envolve o assassinato de Roger Balfour, homem rico que deixa uma jovem e bela filha órfã, a frágil Lucille. Após 5 anos do crime, ainda sem solução, retorna à investigação o detetive Edward Burke da Scotland Yard, que passa a vivenciar experiências horripilantes junto aos vizinhos da Mansão Balfour (que acolheram a jovem órfã Lucille). A figura central destas experiências macabras é um homem de expressão enlouquecida, olhos vidrados, dentes pontiagudos, que veste terno, capa e cartola. Sucesso enorme de bilheteria à época, o filme recebeu avaliações ambíguas e mornas da crítica especializada. Entretanto, passaria para imortalidade ao concentrar a hipnotizante performance de Chaney (O Homem das Mil Faces), um enredo cheio de mistérios e reviravoltas, e sua destruição em 1967. A edição da Skript/Quadriculando é um presente para amantes do cinema, sobretudo do cinema de terror/horror. A começar pelo expediente das primeiras páginas da edição, complementadas pelas últimas, que trazem uma matéria escrita por Roberto Barreiro intitulada Vampiros da Meia-Noite - A História por Trás do Filme Perdido. Nela, Barreiro situa de forma envolvente e clara, acontecimentos que fizeram da película a relíquia perdida que se tornou. Embora não tenhamos mais como assistir ao filme, a HQ cumpre seu papel ao trazer ao leitor a atmosfera de mistério, horror, investigação e ambientação soturna. Um presente que tive a chance de apoiar no Catarse e que você precisa conhecer!





domingo, 30 de abril de 2023

Pílula Gráfica #24: Gus . Nathalie - (2016) - Uma abordagem criativa e afetivamente subversiva do velho oeste!



Quando recomendaram-me Gus (e isso aconteceu várias vezes), esperava encontrar uma história que, embora com um desenho caricato, traria uma história ao estilo Tex Willer, ou quem sabe uma história  ao estilo Western Italiano. A verdade é que a obra não tinha nada a ver com nenhuma abordagem do velho oeste que eu já havia conhecido. Gus é, na verdade, o nome de um assaltante que, ao lado de outros dois companheiros, sobrevive de roubos a trens e bancos. Entretanto, não são as aventuras que ele vive ao lado dos amigos o ponto central da narrativa, mas sim a vida amorosa do pequeno bando. O autor, Christophe Blain, apresenta as carências masculinas pelo afeto feminino (na maioria das vezes reprimida) usando como pano de fundo uma ambientação das mais inesperadas, o hermético mundo masculino do oeste selvagem. Na obra de Blain, embora violentos, Gus e Cia. vivem às voltas com relações familiares, amores não correspondidos e, sobretudo com a busca de mulheres para conhecerem e se relacionarem. Para fãs (como eu) do tradicional Western, em que o anti-herói pistoleiro é quase sempre total ou parcialmente infalível, Gus traz uma leitura que me obrigou a refazer alguns pressupostos esperados e exigidos do gênero. E nesse processo, tive que abrir espaço para outras visões que possivelmente fizeram parte sim da época. Inicialmente confesso que torci o nariz, mas depois, a narrativa leve, descompromissada, engraçada e criativa de Blain me fez navegar cada vez mais à vontade. A obra possui início, meio e fim, e foi trazida ao Brasil pela editora Sesi-SP. Tive um pouco de trabalho para conseguir um dos volumes da série, que no Brasil contou com 4 volumes: Gus - Nathalie (2016); Gus - Belo Bandido (2017); Gus - Ernest (2017); Gus - Feliz Clem (2018). HQs que envolvem desenhos muito caricaturais raramente chamam minha atenção, o que confesso ser um defeito. Isso quase aconteceu com Gus, mas foram indicações que me chegavam continuadamente sobre a HQ, que aos poucos, foram minando meu certo distanciamento. Se você quer conhecer um aspecto interessante, diferente e inovador do velho oeste, Gus é uma excelente obra. Vale muito a pena!!



domingo, 23 de abril de 2023

Pílula Literária #11: Os Três Impostores



Por motivos que ainda me escapam (muito embora eu já tenha hipóteses para explicar este fenômeno literário brasileiro) diversas pequenas editoras nacionais têm surgido nos últimos anos catapultadas pelo sucesso das plataformas de financiamento coletivo. Wish, Clepsidra, Cartola, O Grifo, Ex Machina, Melusine Press, Skript... são editoras que entraram no mercado com uma ótima curadoria e com uma proposta de resgatar grandes obras inéditas ou lançadas no Brasil em um passado muito, muito distante. O livro Os Três Impostores é fruto desta bem vinda onda de lançamentos de tesouros perdidos. Escrito em 1895 por Arthur Machen é, nas palavras de Jorge Luís Borges uma obra-prima secreta: "A literatura tem pequenas obras-primas quase secretas. Os Três Impostores é uma delas". A obra foi comentada por outros gigantes também: "Após um estudo minucioso da técnica de Poe, sou forçado a dizer que seus contos foram superados pelos de Arthur Machen" - Robert E. Howard; "Os Três Impostores traz a histórias que talvez represente o ponto culminante da perícia de Machen como arquiteto do horror" - H.P. Lovecraft. O livro faz jus aos comentários. Com uma história que se passa na Londres da virada do século XIX para XX, a obra tangencia constantemente o estranho e a arqueologia pagã, mantendo o leitor o tempo todo sem saber se realmente estamos falando de invenções mágicas ou relatos verídicos. A narrativa traz dois amigos da aristocracia intelectual londrina (Dyson e Phillips) que se envolvem com os relatos de 3 outras respeitáveis pessoas (Davies, Helen e Richmond). Seriam as narrativas contadas por estas pessoas verídicas? Machen traz "histórias dentro de histórias" mantendo sempre o fio narrativo principal muito bem posto, o que auxilia o leitor como uma linha deixada na floresta para que não nos percamos. O terror e o horror estão presentes, entretanto, nas sombras, à espreita, e não de forma explícita (exceto pelo final do livro!). A edição traz uma Introdução escrita pelo próprio Machen comentando a repercussão que o livro teve à época e um artigo do autor publicado em 1934. Coroam também a edição da Editora Ex Machina dois textos que contextualizam de forma precisa a obra. O primeiro (o prefacio do livro) é assinado por James Machin, na verdade um texto originalmente publicado como ensaio para uma edição europeia do livro. O segundo de autoria de Guilherme da Silva Braga (tradutor da edição brasileira) que é Doutor e mestre em estudos de literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O texto do Guilherme traz inferências incríveis que à principio passam despercebidas mesmo para os mais atentos leitores. Um texto que, quando terminei de ler, redimensionou incrivelmente a obra. Os Três Impostores precisa ser conhecido por amalgamar o cotidiano e o ordinário ao obscuro, àquilo que se esconde nas sombras.

Arthur Machen

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Pílula Literária #10: Torto Arado














Muitas vezes, ou melhor, na maioria das vezes, as palavras (escrita ou falada) comportam-se de maneira a reduzir a profundidade e grandeza dos sentimentos. Entretanto, eventualmente alguém é capaz de, primeiramente doma-las e aquieta-las dentro do turbilhão da mente, para depois continuar a difícil lavra de as colocar na ordem precisa e correta para aproximar o texto ao que se sente. Mais difícil ainda é usa-las num contexto que signifique algo profundo para muita, muita gente. Itamar Vieira Júnior consegue isso no seu TORTO ARADO, livro de 2019 ganhador dos Prêmio Jabuti de Romance Literário, Prêmio Jabuti de Livro Brasileiro Publicado no Exterior, Prêmio Oceanos entre outros. Mas mais que prêmios, o livro lembra Érico Veríssimo no seu Tempo e o Vento, ao trazer as histórias e memórias das irmãs Bibiana e Belonísia. Guerreiras das batalhas escondidas no cotidiano do verdadeiro Brasil, o Brasil profundo... Crias de uma sociedade profundamente marcada por anseios e tragédias ancestrais... Vozes que ecoam dentro de qualquer habitante do continente sul-americano. Herdeiro desta estirpe, o Geógrafo, Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA, Itamar Vieira Junior é, com orgulho, um dos nossos melhores "domador de palavras" da atualidade.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Pílula Gráfica #23: O Procurador - (2022) - Mais um acerto de Gianfranco Manfredi!













Histórias de Westerns possuem narrativas muito bem estruturadas dentro de seu universo particular. O pistoleiro em busca de redenção, a prostituta que busca uma vida diferente, os típicos e provincianos personagens periféricos, o fora da lei, o proprietário de terras que deseja comprar tudo a sua volta à força... Alguns autores de HQs, entretanto, conseguem manejar esta narrativa trazendo o "realismo" (caso de Ken Parker de Giancarlo Berardi) o "insólito" (caso de Mágico Vento) e o "inusitado" (caso de O Procurador), esses dois últimos de Gianfranco Manfredi. Em O Procurador, Manfredi concretiza o "inusitado" na figura do Procurador que dá título à obra. Na verdade o inglês James Jennings, ou simplesmente JJ. Exímio atirador, JJ representa o escritório de advocacia Billows & Green e, embora cordato e educado, JJ não é um homem que se intimida com canos fumegantes, e é capaz de fazer de tudo para proteger a integridade de seus clientes. Nesse caso um boxeador miserável que herda uma herança. Assim, JJ precisa leva-lo até seu prêmio, iniciando uma trilha por uma complexa rede de interesses que passa por um pano de fundo real: a política, a revolução que se avizinha no México, o progresso na forma das locomotivas... Assim como em outras histórias de Manfredi, em O Procurador a narrativa se desenrola de maneira fluida e ao mesmo tempo crescente, com tudo muito crível e plausível. Não à toa que, para mim, o autor tem se tornado meu preferido. A edição da Pipoca e Nanquim traz a obra em um formato grande e ao mesmo tempo leve (possivelmente por conta do papel usado), o que torna o volume de fácil manuseio. O tamanho valoriza a arte do brasileiro Pedro Mauro (Trilogia Gatilho), artista da velha guarda que ganha o merecido reconhecimento nacional e internacional. JJ pode parecer um inglês "almofadinha", entretanto, por trás das camadas da fleuma inglesa se esconde um leão como vocês poderão ver. Mais um ótimo trabalho de Manfredi!

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Pílula Gráfica #22: Coney Island - (2022) - Uma experiência Imersiva!


Depois de Face Oculta, tudo que chega ao Brasil de Gianfranco Manfredi cai no meu radar. E não foi diferente quando vi que a obra Coney Island chegava pelas "mãos" da Editora 85, mais especificamente pelo seu selo Lorobuono Fumetti. Manfredi é um autor italiano que chegou à um nível de escrita que permite a imersão completa do leitor ao universo que quer retratar. Foi assim em todas as obras que li dele e é assim com Coney Island. Se você já tocou o universo místico, estranho, bizarro, alegre e cheio de cores de um Parque de Diversões, você precisa saber que tudo isso teve um núcleo primordial que chegou ao seu ápice e Coney Island, parque tradicional de Nova York localizado na Península de Coney Island distrito de Brooklyn. Destino turístico de multidões no início do Século XX, o parque simbolizava de certa forma uma forma de muitos esquecerem suas vidas sofridas, violentas, miseráveis e sem horizontes. Sobretudo depois do Crash da bolsa de Nova York em 1929. Esse é o palco que Manfredi usa para trazer uma poderosa história de gangster com participação, inclusive, de personagens reais, caso de Al Capone, por exemplo. Embora lançada em dezembro de 2022 no Brasil, a HQ entrará sem dúvida nenhuma para a galeria de melhores HQs lidas por mim em 2023. Sem minimizar a violência característica da época, o autor mantém o equilíbrio exato com drama, realidade, ficção, misticismo e (ia escrever "romance" mas o correto é outra coisa) a necessidade de amor das pessoas. A história tem como personagens centrais o Detetive durão Jack Sloane, a "iludida" garçonete Brenda (que almejava mais que sua pacata vida do interior), o motociclista de acrobacias e ex-combatente da 1ª Guerra mundial Speedy e o místico e mágico Mister Frolic (um ilusionista que possui poderes extra-sensoriais verdadeiros). Mas além deles, há um incrível elenco de apoio que por vezes roubam a cena (os amigos e companheiros do parque, outros policiais do departamento de Jack...), dando carga e peso dramáticos incríveis. A edição compila a saga completa com os 3 capítulo, sempre com um texto interessantíssimo de Manfredi no início de cada um. Taí uma HQ que você precisa conhecer!

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