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domingo, 28 de novembro de 2021

Pílula Gráfica #13: Nathan Never - Futuro Duplo - (2021)


O primeiro personagem da Editora Bonelli que conheci foi Tex, o segundo foi Nathan Never. Como aficionado que sou por ficção científica, Nathan Never se tornou um dos meus preferidos, seguido logo atrás pelo Ranger Águia da Noite. Minha discreta preferência por Never não ocorre apenas por ele viver suas histórias a partir da ótica sci-fi, mas sobretudo por ter suas aventuras contadas em um ambiente que mistura distopia à uma ambientação Noir. Não há como não perceber, pelo modo de agir do personagem uma discreta, mas ao mesmo tempo profunda, melancolia. Um sentimento que, ao ser associado à constante busca inconsciente pela redenção de pecados passados, cria a atmosfera perfeita para a ambiguidade moral e complexidade das tramas. Nesse aguardado volume Nathan Never - Futuro Duplo, a Editora Graphite nos traz uma obra que define muito bem a natureza do herói. Com um acabamento em capa dura, verniz localizado, excelentes resenhas e papel de ótima gramatura, a edição faz jus à importância de Nathan dentro do Universo Bonelliano. O autor da trama, Antonio Serra, parece ir por caminhos óbvios nas primeiras páginas, mas logo mostra a maravilhosa complexidade de sua trama, que se desenvolve em futuros distintos. Com isso ele rapidamente se descola de enredos já utilizados no passado e vai além. Serra consegue homenagear séries e filmes do passado associando-os à um roteiro cheio de vitalidade, de maneira que o leitor consegue ver suas amadas obras de sci-fi representadas dentro de algo cheio de vigor. Em um dos extras da edição, o próprio autor se antecipa às eventuais críticas acerca das homenagens que faz ao dizer o quão difícil é escrever sobre um tema tão explorado até então (e olha que ele escreveu a obra na década de 90). E é justamente isso que chama a atenção, ou seja, sua obra conseguiu sobrevier ao teste do tempo de maneira vigorosa e ainda relevante. O tratamento dado pela Graphite ao material é de fã para fã, e os extras contextualizam muito bem a dimensão e o alcance da história. Não à toa a Graphite está se tornando a casa do personagem no Brasil. Originalmente publicada na Itália na série Nathan Never Gigante #1, aqui no Brasil esse lançamento foi financiado através da Plataforma Catarse. A impressão que eu tenho é que a base de fãs brasileira de Nathan Never não é tão gigante a ponto de permitir um financiamento ultra rápido, o que fez com a edição saísse dentro de um prazo mais alongado. Isso (infelizmente) nem todos entendem, ou seja, que é necessário uma estratégia de lucro a partir do dimensionamento do personagem no país, o que faz que cada obra tenha seu prazo para ser financiada, lançada e ainda seja sustentável. Vi com tristeza alguns comentário nas redes sociais acerca da demora para que a edição chegasse aos fãs. Embora eu entenda a vontade de se ter logo o exemplar chegando em casa, é preciso que consigamos amadurecer enquanto colecionadores e consideremos as diversas facetas que envolve a produção e o lançamento de uma HQ com um acabamento adequado. De qualquer forma desejo vida longa à Nathan Never no Brasil, e que permaneça nas mãos de quem curte o personagem tanto quanto eu.








quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Pílula Gráfica #12: O Astronauta - (2021)


A canção Nave Errante de autoria do músico Guilherme Arantes foi lançada em 1976 no disco homônimo "Guilherme Arantes". Nessa música a letra diz "Minha casa é uma nave; E eu trafego só; Sem contato com viv'alma; No silêncio frio das trevas...". Como que a ecoar esta canção Lourenço Mutarelli e o artista Fernando Saiki fizeram uma obra singular para dizer o mínimo, O Astronauta. Um dos lugares mais incríveis que se tem para viajar, desde que se tenha a imaginação como guia, é nosso lar. Nele conseguimos nos refugiar e facilmente transforma-lo em uma nave errante. No mundo atual, utilitarista, hedonista e recheado de conselhos superficiais e supérfluos acerca da necessidade de se expor continuamente, o modo de vida pessoal introspectivo possui pouco apelo. Mas eis que uma obra retorna às prateleiras para dizer o contrário. O Astronauta é uma viagem interna ao universo pessoal do autor, que abriu seu apartamento e serviu de "modelo" para as fotografias de hiper-realismo fantástico do fotógrafo Flávio Moraes. Feita de reminiscências e reflexões pessoais de Mutarelli, O Astronauta pode parecer uma HQ sobre "nada", mas isso é exatamente o que o autor quer que você pense, pois no final é sobre "tudo". Sobre memórias, inconsistências, evolução, frustação, introspecção... Ao enxergar sua própria casa como um universo à parte, Mutarelli me fez mergulhar dentro do meu próprio universo (como às vezes faço) atrás de significados cotidianos. O artista Fernando Saiki fez um trabalho hercúleo ao traduzir para a xilogravura as fotos de Moraes. E ao fazê-lo conseguiu criar a atmosfera onírica perfeita para o mergulho interior de Mutarelli. O efeito das xilogravuras no leitor o leva à uma vivência visceral com a história. Os indefectíveis objetos identificados no apartamento de Mutarelli (reproduzidos fielmente por Sakai) me causaram a estranha sensação de estar enxergando-os na sua essência primordial. A lixeira da cozinha, o cinzeiro, os móveis, a cafeteira, os botões do fogão... Tudo tão brasileiro, tudo tão familiar à nossa cultura, mas ao mesmo estranhos ao serem contemplados em outra perspectiva! O efeito é lisérgico e profundo. A experiência vivida pelo protagonista ao longo da história, no caso o próprio Mutarelli, é de neurose e ao mesmo tempo transcendência. Lançada em 2010, a obra ganha reedição pela editora Comix Zone que fez um caprichado projeto gráfico valorizando nos extras as fotos originais de Morares, além de trazer um card/postal com a capa. Insólito e ao mesmo tempo curioso, O Astronauta é uma obra para se revisitar esporadicamente para se reter outras nuances, outras imagens, outras sensações... da concretude da chama acesa em uma das bocas do fogão, ao isolamento de um sofá vazio que dá toda dimensão de um espaço sideral imenso e profundo. Na "chamada" da Editora, há uma associação da obra com os sentimentos causados pelo isolamento social imposto pela pandemia de COVID-19 nesses últimos dois anos. Talvez uma tentativa da editora de alinhar a HQ com o nosso tempo. Acho que essa associação é válida, visto que muitos foram forçados a vivenciarem experiência semelhante à do protagonista em suas vidas nesse estranho tempo em que vivemos. O Astronauta é ímpar e singular em sua estranheza, beleza e transcendência.




segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Pílula Gráfica #11: Ken Parker #1 - (2021)

2021 tem sido um ano de anúncios extraordinários para o leitor de quadrinhos brasileiro. Além da volta de Storm ao Brasil pela Editora Tundra, do recente anúncio do retorno de Corto Maltese de Hugo Pratt pela Editora Trem Fantasma e das diversas obras publicadas de mestres como Alberto Breccia (Ninguém, Viajante de Cinza, Um Tal Daneri, Perramus...) e Sérgio Toppi (O Colecionador, Fábulas do Velho Mundo, Tanka), tivemos também a volta de Ken Parker pela Editoria Mythos. Infelizmente para mim, conheci tardiamente a riqueza do Universo Bonelliano, mas mesmo apesar do meu desconhecimento, Ken Parker sempre esteve em meu radar em função das excelentes análises que sempre li sobre o personagem. Com tantos elogios uma obra sempre corre o risco de estar superestimada. Mas definitivamente não é o caso de Ken Parker. Criado em 1977 pelo roteirista e desenhista Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, respectivamente, a obra que narra a história de Keneth Parker atinge graus de realismo, dramaticidade e poder narrativo impressionantes. O leitor se deparará com uma realidade na qual Berardi não faz concessões ao expressar a dureza da violência e a complexidade das relações humanas norteadas por questões políticas, étnicas e territoriais no ainda fragmentado Estados Unidos do pós Guerra da Secessão (1861-1865). Conflito no qual o Norte (progressista) confronta os Estados Confederados do Sul (ainda resistentes ao progresso e, sobretudo, libertação dos escravos). Ken se difere dos diversos outros personagens dos Westerns ao ser confrontado com questões que o colocam constantemente em cheque, e dentro das quais ele tenta tomar a melhor decisão possível (muitas vezes equivocadas), mas sempre com a humildade de revê-las. O assassinato do seu irmão mais novo nas primeiras páginas da 1ª História da série passa a influenciar profundamente a decisão de Parker a ficar ao lado de pessoas mais fracas. Mas nada é tão simples, pois a ambiguidade das ações do homem branco é sempre um desafio para qualquer homem de bem. As cenas e os desfechos são poderosos e causam forte comoção no leitor. Não pude deixar de ficar sem saber para quem "torcer" nas duas primeiras histórias deste número 01 da Editora Mythos (que se propõe a publica-las em ordem cronológica). Isso porque as ações de índios e homens-brancos são difusas se analisarmos o complexo pano de fundo. Se adotarmos uma base moral simplista, será muito difícil entender na sua totalidade a profundidade de Ken Parker. A ambientação é excelente ao apresentar locais conhecidos dos amantes dos filmes de faroeste. Também não pude deixar de ver o personagem Ken Parker como uma mistura de Daniel Boone (1734-1820 - explorador estadunidense), Henry Thoreau (1817-1862 - naturalista, filósofo e autor da maravilhosa obra WALDEN) e John Muir (1838-1914 - explorador e escritor escocês-americano). Outro ponto que diferencia muito a obra é o fato de que Ken Parker experimentará a passagem do tempo ao longo das edições, mudando seu físico e posições acerca das coisas que o cercam. Berardi/Milazzo inovam ao decidir pela finitude ficcional do personagem. Isso aproxima o personagem do leitor, no entanto, acaba por impor um fim à trama no futuro. Mas assim é a vida real também. Se você quer conhecer uma série de extrema qualidade, adulta e totalmente fora do lugar comum, você precisa conhecer Ken Parker.




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