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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Pílula Literária #17: Rodolfo Zalla - O Sentido de Tudo


Fascinante, acadêmico, afetivo, histórico, familiar... Rodolfo Zalla - O Sentido de Tudo, do jornalista Gonçalo Júnior, é uma obra que alinha perfeitamente todos esses adjetivos por mais que pareçam, à princípio, distantes entre si. Um livro que foi publicado graças a insistência e lealdade que o autor dedicou ao desenhista Rodolfo Zalla e à sua obra. Um lançamento gestado desde 2008 quando Gonçalo entrevistou o mestre Zalla. A história das Histórias em Quadrinhos sempre foi e será fascinante, mas se torna ainda mais incrível quando conhecemos as personalidades que estiveram por trás delas. Rodolfo Zalla, desenhista argentino que imigrou para o Brasil no início dos anos 60, é uma destas personalidades a ser conhecida e pesquisada à fundo em função não apenas da qualidade de seu traço, mas porque foi testemunha ocular e partícipe da construção de um imenso capítulo dos quadrinhos nacionais. O livro de Gonçalo, entretanto, não se atem às questões técnicas, históricas e políticas que serviram de pano de fundo à vida de Zalla, na verdade a construção da obra estrutura-se também dentro de aspectos simples e afetivos da vida do desenhista. Aspectos estes que, assim como em nossas nossas vidas, redimensionam e ressignificam tudo, já que apontam para nosso caráter. Rico em ilustrações e capas, o livro traz inclusive HQs inéditas ilustradas por Zalla, o que traz brilho adicional ao texto de Gonçalo, expandindo a experiência da leitura. Mas por que a obra é tão relevante? Para além de palavras elogiosas de alguém como eu, que tem apreço especial pela vida dos homens e mulheres que construíram a 9ª Arte, há na leitura do livro a percepção clara de como se davam as publicações no conturbado Brasil dos anos 60, 70, 80 e 90. Se de um lado tínhamos grandes editoras no Rio de Janeiro, em São Paulo os quadrinhos funcionavam no âmbito das pequenas editoras, o que nem por isso tornava a cena menos interessante e incrível nas paragens paulistas. Na leitura descortina-se encontros e desencontros que moldaram a forma de se fazer e produzir quadrinhos em nosso país no século XX, espelhos de uma conjuntura política e social. Zalla foi muito associado à produção de quadrinhos de terror no Brasil com as famosas revistas Calafrio e Mestres do Terror, porém sua contribuição em outras áreas é colossal, como no caso de artes produzidas no contexto didático que auxiliaram o aprendizado de algumas gerações de crianças, algo inovador ao fundir a experiência escolar aos quadrinhos em livros didáticos. Grande também foi sua incursão por outros gêneros dos quadrinhos como no caso do faroeste e temas de guerra. A relação do artista com grandes nomes da indústria também é bem descrita, artistas como Eugênio Colonose, Nico Rosso, Luís Merí, Mozart Couto, Sebastião Seabra, José Delbo, Primaggio Mantovi... roteiristas como R.F. Luchetti, Maria Aparecida Godoy, Reinaldo de Oliveira, Gedeone Malagola... editores como Miguel Penteado... entre muitos outros transitam ao longo das páginas traçando um grande painel de pessoas que construíram os quadrinhos nacionais durante várias décadas. Assim, Rodolfo Zalla - O Sentido de Tudo se constitui em material imprescindível por revelar de forma simples, afetuosa e didática um legado maravilhoso tendo como pano de fundo a memória dos quadrinhos em terras brasileiras.
 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Pílula Gráfica #35: Bruxas, Minhas Irmãs - (2023) - Uma Antologia de Chantal Montellier


Depois de Social Fiction (Ed. Comix Zone), a francesa Chantal Montellier tem outra obra publicada no Brasil, agora pela Editora Veneta. Trata-se de Bruxas, Minhas Irmãs. Uma obra densa, na qual a autora traz exemplos de mulheres que ao longo da história foram acusadas, julgadas e, na maioria das vezes, condenadas como bruxas. Montellier conta essas histórias de uma maneira muito, mas muito diferente do usual. Ela exige do leitor certo preenchimento de pequenas lacunas narrativas, o que, por sua vez, confere linhas ocultas dentro da história. Assim, o sugestionamento se insinua e deixa a obra mais profunda, aludindo a temas como sexismo, misoginia, obscurantismo, racismo, intolerância, entre muitos outros. O desenho é da própria autora e traz outra camada de profundidade, já que é melancólico, desolador e estranhamente alinhado a atmosfera trágica. Determinadas expressões faciais específicas são guardadas para certos personagens-chave nas diversas narrativas. São rostos que confrontam o leitor, que por sua vez se sente indagado pelas personagens, gerando sensação de sermos coparticipes nesse grande teatro de horror. Mas há mais coisas no âmago da obra. A autora traz uma interpretação subjacente ao fenômeno da "caça às bruxas", e com o qual eu concordo. Há dentro da psiquê masculina um deslumbramento natural pelo sexo feminino, e isso não é apenas subjetivo, é biológico também (obviamente), porém tal deslumbramento natural, fragiliza de alguma forma a hermética e belicosa natureza dos homens. Dentro de um contexto histórico, tal deslumbramento/admiração/feitiço pela beleza e natureza femininas, é muito difícil de ser admitido, sobretudo dentro de sociedades calcadas por símbolos e estereótipos de poder masculino. Admiti-lo seria uma exposição tristemente interpretada como "fraqueza". A solução sempre foi a imposição de modelos de vida para o sexo feminino dentro dos quais a mulher deve ser mantida "controlada" e "policiada". Qualquer movimento na direção oposta seria permitir que tal beleza ou "feitiço" crescesse a tal ponto de subjugar o status quo predominante. Figuras que eventualmente destoassem deste padrão seriam estereotipadas com a marca do oculto, do subversivo e do "viver maligno". Esta tônica parece permear a antologia de Bruxas, Minhas Irmãs. Dos relatos presentes na obra Fogo na Floresta e De um Diabo a Outro me marcaram bastante, sendo o primeiro deles sobre Camille Claudel. E por falar em símbolos, Chantellier faz grande uso deles. Cada página traz diversas imagens simbólicas cuja intepretação me escapou. Para um leitor mais perspicaz é possível que a obra cresça ainda mais ao dimensiona-la no contexto destes símbolos. A Edição da Veneta tem capa dura, papel de alta gramatura e um detalhe muito bem vindo, as letras são da famosa, e querida para muitos leitores de quadrinhos, Lilian Mitsunaga.

Página da história: Eva Desloups

Página da história: Eva Desloups

domingo, 7 de janeiro de 2024

Viagem Literária - 2023


i) Uma narrativa de 1895 de tons fantásticos e profundos envolvendo 3 impostores; ii) reflexões e dicas para todo admirador da 9ª Arte; iii) o Brasil profundo em uma história que sangra em veias abertas ainda hoje; iv) um relato fascinante acerca do Brasil místico e cheio de histórias que refletem nossa própria gente; v) uma pérola da literatura mundial escrita em 1899 que sintetiza a barbárie do coração humano; vi) um passeio pelo mundo espiritual na visão de Ed & Lorraine Warren; vii) a incrível vida do brasileiríssimo José Mojica Marins, com todas as suas idiossincrasias, inconsistências, afetos e amores; vii) e por fim um relato forte e direto acerca dos acontecimento vividos em 1975 pela família Lutz no Nº 112 da Avenida Ocean Drive em Amityville, Long Island, EUA.


Publicado em 1895 e de autoria de Arthur Machen, Os Três Impostores é um livro fascinante em sua estrutura narrativa. Relatos acerca de um mistério que não apenas se completam, mas que revelam uma realidade mais profunda, fantástica e terrível por trás do cotidiano e do pueril. Um livro que para ser escrito precisou de uma habilidade que nunca vi antes em um autor. Habilidade de conexões e "costuras" narrativas com as quais nunca havia me deparado. Elogiada por mestres que ainda seriam reconhecidos ao longo do século 20 tais como, Jorge Luís Borges, H.P. Lovecraft e Robert E. Howard, a obra me marcou muito, e foi a primeira que li entre a virada de 2022 para 2023. Uma edição financiada no Catarse pela Editora Ex Machina, editora que como a Wish, Clepsidra, Melusine Ex Press, Cartola, O Grifo, Skript, entre outras, vem fazendo um incrível trabalho de apresentação de obras excepcionais e esquecidas. Um livro incrível!

Arte de André Valente presente em Balões de Pensamento livro de autoria de Érico Assis

O tradutor, escritor e jornalista Érico Assis é uma grande personalidade no mundo dos quadrinhos. Colecionando textos ao longo de anos em uma coluna para um meio de comunicação, ele compilou suas reflexões em dois livros: Balões de Pensamento 1 e 2. Nesse primeiro, dividido em sessões baseadas em características da narrativa gráfica, Érico desfila análises interessantes e pontos de vista pouco abordados nas avaliações usuais do meio. Como todo bom estudioso, com enorme bagagem dentro de uma determinada área, Érico tece críticas que me fizeram pensar e refletir, às vezes concordar, às vezes discordar. Os Quadrinhos se refere a um meio de comunicação que traz em seu bojo forte apelo emocional e afetivo, marcando profundamente os corações dos seus leitores. Isso explica nosso apego a determinados títulos e personagens que, eventualmente frágeis do ponto de vista artístico, são extremamente preciosos para nós. Daí algumas eventuais discordâncias. Um livro muito interessante e que vale a pena ler, sobretudo em função das reflexões serem como pílulas de fácil ingestão.


Para além de todos os prêmios ganhos dentro e fora do Brasil pela obra, Torto Arado é um livro muito maior que seus prêmios. Não se trata de uma obra laureada em função de um academicismo hermético, que serve muito mais para retroalimentar o hedonismo da academia e de alguns literatas. Longe disso, é uma obra que faz o contrário, nos aproxima verdadeiramente do Brasil profundo. O Brasil que está em nosso sangue, adormecido, esperando gatilhos para ser acionado. Um livro de sangue, que traz a maior força impulsionadora do homem, a força das relações humanas que impregnam nosso sangue e que, de alguma forma, se transmite para nossos descendentes. Durante minha leitura de Torto Arado entrei em um estado catártico, quase fora da realidade. As portas da minha ancestralidade foram abertas e me colocaram "fora do tempo". Algo que nos proporciona outra perspectiva do hoje. Leitura que deveria ser obrigatória à todo brasileiro, mesmo aquele totalmente contaminado pelo ilusório verniz da abjeta internacionalização superficial e mercadológica, que tratora toda cultura, individualidades e relacionamentos. Convido você a fazer uma viagem para dentro do seu próprio sangue.


Em 2010 assisti à peça de teatro Assombrações do Recife Velho em São Paulo. Fui transportado para dentro de um túnel de experiências e acionamento de memórias pessoais. O medo, o fascínio, a percepção do obscuro e a poesia se fizeram presentes. Naquele dia registrei na minha mente que um dia leria o livro no qual a peça havia sido baseada. Treze anos depois visito a obra e saio dela com a ideia concreta que a metafísica presente nas lendas, é também espelho de nossas dores, mágoas e tristezas. A obra de Gilberto Freyre é clássica e fundamental não apenas por descortinar muito de nossa herança cultural, mas também por apresentar a escuridão palpável das encruzilhadas, das meias-noite, dos sons e  das experiências inexplicáveis. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido em um ambiente de fazenda, ou que tenha tido o mínimo de contato com os silêncios das noites e das casas antigas, sabe o quão palpáveis estas histórias podem se tornar. Inexplicável também são as similaridades de determinados relatos narrados no livro com os acontecimentos de outros 3 livros que já li e que não teriam como ter inspirado tais relatos nesta obra de Gilberto Freyre, uma vez que foram derivados de acontecimentos posteriores: i) 1977 - Relatos Sobrenaturais - O Caso Enfield, ii) Ed & Lorraine - Demonologistas e iii) Amityville; ou seja, Assombrações do Recife Velho guarda muito mais profundidade para além do campo dentro do qual é, em geral, apreciado e interpretado, o da sociologia.


Guardado há muito tempo em minha pilha de leitura O Coração das Trevas estava, provavelmente, aguardando eu estar pronto para sua grandeza. A obra foi publicada em 1899 e é de autoria do polonês Joseph Conrad que, aos 32 anos, em 1890, viveu uma experiência nas profundezas da selva do Congo como empregado de uma empresa extratora de Marfim. Ali, vislumbrou a profundeza negra do coração humano movido pelo lucro, ao testemunhar a dissolução completa da natureza humana e sua transformação em um amálgama de instintos cruéis junto seu semelhante. Esse vislumbre marcou profundamente Conrad, levando-o a escrever O Coração das Trevas como espelho de suas experiências brutais. Setenta e oito (78) anos depois, em 1979, outro visionário, Francis Ford Coppola, rodaria Apocalipse Now, sua adaptação particular da obra de Conrad. Coppola transportou, entretanto, a desumanização vista por Conrad nas selvas do Congo em 1890, para a Guerra do Vietnã. A trajetória desta pérola da literatura universal, que de livro publicado no final do século 19 à um dos maiores filmes de guerra já filmados, traz a importância da difícil, mas verdadeira e universal mensagem enviada por Conrad há 133 anos diretamente dos espaços profundos do Congo.


Em função das muitas especulações envolvendo o casal Warren, sobretudo com seu sucesso após a franquia Invocação do Mal (baseada nos casos investigados pelo casal) ganhar o mundo, resolvi debruçar-me sobre o primeiro livro acerca de Ed & Lorraine. Escrito pelo jornalista Gerald Brittle, conhecido por seus relatos jornalísticos acerca do sobrenatural, Ed & Lorraine Warren - Demonologistas, trata de explicar a estranha e pouco conhecida ocupação de demonologista. Lançado no início da década de 1980, o livro traz entrevistas feitas diretamente com o casal acerca de diversos casos vivenciados por eles. Mas mais que isso, a obra busca explicar i) o ofício da demonologia, ii)  a estrutura e classificação daquilo que é enfrentado por eles e iii) o sinais e sintomas da aproximação de certos fenômenos para os quais a ciência moderna não consegue explicar, mesmo passados 43 anos da sua publicação. Embora os relatos sejam vistos com ceticismo por muitos, fica difícil não se aproximar e ter empatia pelas famílias e pessoas vítimas de determinados fenômenos que, sem ter mais a quem recorrer, buscam desesperadamente o apoio de pessoas que, pelo menos não as verão como loucas. A obra é quase uma introdução aos outros 3 livros que o sucede, nos quais determinados casos são relatados de forma muito mais pormenorizada. Recomendo àqueles que se interessam sobre o tema.


Satanista (?), ocultista (?), mestre das artes místicas (?)... Felizmente para alguns, infelizmente para outros, nenhuma dessas coisas. José Mogica Marins era na verdade um artista que encontrou no cinema, mais especificamente no gênero terror, a forma de manifestar a profusão de ideias que tinha ebulindo em sua mente. Um apaixonado pela 7ª arte, pelas pessoas que o rodeavam e por qualquer forma que pudesse lançar mão para manifestar seus conceitos. Ler o livro Zé do Caixão - Maldito, dos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti foi uma experiência extremamente agradável em 2023. Mogica foi uma testemunha da estética brasileira ao longo das décadas, manifestou sua arte a despeito de risos, comentários maldosos e ironias, e o livro apresenta sua vida desde o nascimento. Era uma pessoa que não dava a menor bola para a opinião alheia e tinha a saudável qualidade de rir de si mesmo, o que mostrava uma personalidade livre das vaidades tão presentes em determinados núcleos artísticos. Mogica se interessava apenas em filmar. Um cineasta reconhecido lá fora e que dentro do Brasil foi rejeitado pela casta cinematográfica dominante. Exceções, entretanto, para diretores do calibre de Glauber Rocha e Luís Sérgio Person, que admiravam profundamente a visão artística e plástica de Mogica. O livro inspirou a série de TV homônima do Canal Space e é de uma fluidez maravilhosa, além de trazer imagens, fotos, cartazes e diversas curiosidades acerca da vida de Mogica. Uma obra que caso fosse adaptada em sua integralidade, renderia uma série com várias e excelentes temporadas.


Uma das histórias mais exploradas no mundo cinematográfico foi baseada no que ocorreu com família Lutz durante 28 dias entre 18 de dezembro de 1975 e 14 de janeiro de 1976 no Nº 112 da Avenida Ocean Drive em Amityville, Long Island, EUA. O livro Amityville do escritor e roteirista Jay Anson narra, a partir de entrevistas realizadas diretamente com os membros da família, o dia a dia das 4 semanas durante as quais os Lutz (George de 28 anos, sua esposa Kathleen de 30 anos, e os filhos Christopher de 7 anos, Daniel de 9 e Melissa de 5) moraram no endereço. Publicado apenas alguns anos após as experiências da família, o livro teve a chance de trazer à público passagens narradas diretamente por aqueles que as vivenciaram. Um livro necessário a todos que tem alguma curiosidade e vontade de conhecer manifestações que transcendem o ordinário, bem como a dinâmica e o processo de deterioração psíquica de pessoas que acabaram por se defrontar com o inexplicável. 

Bem amigos... Esta foi minha viagem literária ao longo de 2023. E a sua, qual foi? Deixe seu comentário! Abcs.
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