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sábado, 7 de novembro de 2020

O Mundo de Black Hammer de Jeff Lemire


Qualquer leitor de quadrinhos com um certo tempo de estrada sempre tem esperança de encontrar um novo roteirista que represente novamente os elementos que tanto nos encantam dentro da 9ª Arte. Especificamente dentro do segmento "super-heróis", muito já se tentou e, para mim, os maiores equívocos ocorreram quando o roteiro foi diminuído em detrimento da arte (anos 90), ou então quando quiseram usar de violência gratuita, mortes ou mesmo eventos cada vez mais cataclísmicos para angariar leitores. De vez em quando porém, determinados artistas entendem que o que fascina está no drama pessoal emoldurado por uma boa dose de aventura, mistério e porque não uma dose de violência desde que enquadrada em um contexto dramático. Jeff Lemire tem sido um roteirista que, sobretudo em seus trabalhos autorais, tem mostrado um talento incrível para criar e re-imaginar conceitos sob a perspectiva do mágico e fantástico. Black Hammer, série autoral de Lemire, foi publicada no Brasil pela editora Intrínseca em 4 volumes entre 2018 e 2020, e é uma série assim. Que respeita o passado super heroico das HQs, homenageia pessoas e personagens importantes e ainda assim entrega novos conceitos.


Seria muito difícil um fã de quadrinhos de super heróis se identificar de cara com a imagem acima, que parece muito mais relacionada com um quadrinhos de terror ou horror. Mas não se engane, Black Hammer é sim uma obra fascinante que tem tudo a ver com super-heróis. E quando falo super heróis me refiro ao conceito mais clássico do termo, ou seja, aquele ligado ao super herói da Era de Ouro e de Prata. Aquele herói sem as dúvidas que assolariam os super-seres nas Eras de Bronze e Moderna dos Quadrinhos. Quando comecei a ler Black Hammer fiquei de certa forma incomodado com uma coisa, a arte de Dean Ormston, um artista cujo traço está mais para o terror do que para as chamativas e coloridas imagens dos super-heróis. Mas eu não podia estar mais enganado. Logo passei a entender que a arte de Ormston é perfeita para a história, que apresenta o conceito do herói clássico de uma forma ligeiramente distorcida, e o traço de Ormston acompanha esse conceito dramático a partir de uma distorção estética. E isso dá a profundidade que Jeff Lemire quer aos dramas dos personagens. Dean Ormston é um desenhista que foi acometido por uma lesão cerebral durante seu trabalho ao longo da publicação de Black Hammer, e passou por um longo tempo de reabilitação até retomar uma funcionalidade motora que o permitiria continua-la. Por isso alguns trechos da história são desenhados por outros artistas. O leitor, porém, não vê a hora do traço de Ormston retornar ao longo da narrativa.


Abraham Slam, Menina de Ouro, Madame Libélula, Coronel Weird, Barbalien e a andróide Talky-Walky são os heróis de Black Hammer. O nome Black Hammer, aliás, pertence a um super herói que tem um importante papel na narrativa mas que está morto já desde o início da história. A sinopse básica gira em torno dos seis heróis acima que foram transportados, ao final de uma ferrenha batalha contra uma entidade maligna chamada Anti-Deus, à uma fazenda dentro de uma estranha realidade. Os heróis já estão naquele local há dez anos e não conseguem escapar dos limites daquele território. O herói Black Hammer foi o único que tentou escapar e morreu imediatamente ao atravessar o que parece ser uma barreira. Os personagens chegam a pensar que estão mortos, num purgatório, ou simplesmente foram condenados por algum motivo e sua pena seria permanecer naquele estranho lugar. Perto da fazenda há uma pacata cidade que nada mais é do que uma clássica representação das cidades interioranas dos EUA.


Cada personagem tem seu drama pessoal, como por exemplo o da Menina de Ouro, codinome da personagem Gail, que quando ganhou seus poderes ainda era uma menina. Ao pronunciar a palavra "Zafram", Gail ganha superpoderes. Em seu estado superpoderoso Gail é sempre uma menina, porém quando voltava ao normal seu corpo foi, com o passar dos anos, envelhecendo normalmente. O problema é que Gail já tem 55 anos, e foi aprisionada na fazenda em seu corpo superheróico de menina. Para manter as aparências ela tem que se passar por neta de Abraham Slam, sendo que na verdade já é uma senhora. Outros dramas também aparecem, como o do marciano Barbalien que é homosexual e tem uma vida marcada pela solidão de amores não correspondidos. Uma das personagens que mais gostei foi Madame Libélula, que está sempre reclusa em sua cabana dos horrores.


É impossível não identificarmos nesses personagens os clássicos herois ou vilões da Marvel e DC. Barbalien é o Caçador de Marte, Menina de Ouro é uma versão de Shazam, Abraham Slam é uma mistura de Capitão América com Demolidor, o Coronel Weird é, sem dúvida nenhuma, uma junção de Adam Strange com os exploradores espaciais dos pulps. O próprio Anti-Deus é como se fosse Darkseid. A questão é que Lemire faz questão que vejamos essa similaridade em seus personagens. Ele emula, aliás, até mesmo palavras e uniformes para que não tenhamos dúvida de que seus heróis são referências aos clássicos. E quanto mais fazemos esta identificação, mais a histórias ganha contornos interessantes e estranhos. Não posso deixar de falar também das diversas referências que saltam de cada página. O leitor poderá ver diversos outros personagens e obras do mundo "nerd" representados. Aqui vai alguns deles: personagens da Saga do Quarto Mundo de Jack Kirby; os Perpétuos de Neil Gaiman; os clássicos do horror das revistas Creepy e Eerie; a fantástica série de Rod Serling de 1959 The Twilight Zone (Além da Imaginação no Brasil)... entre outras referências que emolduram a história e conferem densidade à trama.

Poster by Conner Herbison

De uma maneira muito curiosa passamos a aceitar a estranheza dos 6 heróis de Black Hammer, que vão ganhando cada vez mais veracidade e vida própria ao longo da trama. Isso porque Lemire nos narra, em forma de flash-back, um pouco do passado de cada um. À semelhança de outras obras do autor, caso de O Soldador Sub-Aquático, Black Hammer possui uma melancolia sutil em cada cena. Essa sutil tristeza não é gratuita, e o leitor é capaz de perceber densidade nela. Isso é talvez um dos segredos da obra. Não pude deixar de lembrar de algumas obras de Alan Moore, como por exemplo Supremo - A Era de Ouro e Supremo - A Era de Prata. Duas obras que possuem a mesma homenagem às HQs clássicas e são recheadas de uma releitura adulta de conceitos infanto-juvenis. Apesar da aparente similaridade, no entanto, Lemire tem seu brilho próprio e nunca descamba para o negativismo terminal e inescapável. Talvez por isso, haja uma docilidade muito concreta na sua narrativa.

Black Hammer homenageira diversos aspectos clássicos da 9ª Arte.

Recentemente fiquei sabendo que Jeff Lemire aceitou fazer um crossover entre os universos de Black Hammer e da Editora DC. Sempre fui muito avesso à crossovers entre universos e editoras. Eles sempre me cheiraram como "caça-níqueis". Mas fiquei muito curioso acerca deste porque Lemire não precisava tê-lo aceito, sobretudo em função do lugar consolidado que ocupa atualmente no mundo dos quadrinhos. Por isso estou muito interessado. Black Hammer ganhou o prêmio Will Eisner de melhor série original em 2017. Merecido!!

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