Livros nos formam, nos constroem, nos moldam... Mas mais importante que tudo isso acontece quando determinado livro dá "voz" ao nosso interior. Para que isso aconteça muitas coisas devem ocorrer no momento certo, ou seja, você deve ser encontrado por determinada obra com o amadurecimento certo. Infelizmente é possível que muitos livros tenham passado por cada um de nós sem que aproveitássemos sua essência, ou sua mensagem mais profunda. Isso não é culpa nem do leitor nem do escritor... É apenas a assincronia inerente à vida. Mas às vezes isso ocorre, e o efeito é gigantesco dentro do espírito humano. Mas há ainda outra faceta desta reflexão: Há livros que dado sua grandeza forçam a barreira da "falta de amadurecimento" pessoal e conseguem tocar o âmago de praticamente todos, independente do momento pessoal pelo qual passamos. Acho que O DESERTO DOS TÁRTAROS é um livro assim. Escrito em 1940 pelo jornalista Dino Buzatti Traverso, ou simplesmente Dino Buzatti. E de onde vem a grandeza da obra? Bem... Acompanhe-me um pouco nesta jornada e você descobrirá.
A história (sem spoilers) de
Buzatti acompanha a vida do jovem
Tenente Giovani Drogo que assim que, se forma na academia militar, é enviado ao Forte Bastiani, uma distante fortaleza localizada em um determinado extremo do país. O Forte fica voltado para a planície dos Tártaros, um local de onde se pressupõe uma eventual invasão de povos hostis que parece nunca de concretizar.
Drogo vai vivendo sua vida no Forte e é nesse contexto que o livro cresce.
Buzatti com uma escrita fácil e extremamente poética avança para dentro da alma de
Drogo, suas expectativas de vida, seus sonhos, desejos e, nesse painel interior que o tempo exterior (cronológico) se expande e ao mesmo tempo se esgarça. Mas
Buzatti vai além, ele consegue algo muito difícil para um escritor, que é colocar em descrições a complexidade do sentimento humano. Surpreendi-me em vários pontos do livro ao ler frases que me deixaram sem palavras por traduzirem sentimentos profundos e complexos de forma tão simples e ao mesmo tempo profunda. Esta característica eu já tinha observado em dois outros autores
H.P. Lovecraft em seu
Nas Montanhas da Loucura e
John Williams em seu
Butcher´s Crossing.
Alcançar a linguagem do coração é algo muito difícil. Na maioria das vezes o que vemos é a palavra escrita ou falada apenas perverter a sacralidade de nossos sentimentos. Uma das únicas formas de arte que consegue realizar com certeza facilidade a façanha da materialização de sentimentos é a poesia. Porém, quando um autor associa esta rara capacidade à uma história de vida, temos então uma obra eterna. Buzatti em O Deserto dos Tártaros converte o que parece ser uma narrativa aparentemente simples (a vida de um soldado em um forte onde pouco ou nada acontece) em uma oportunidade de se decodificar em certa medida a alma humana. Há trechos do livro em que nos sentimentos totalmente traduzidos, como por exemplo, em um momento em que o autor reflete, tendo o Tenente Drogo como pano de fundo, acerca de nossos anseios não concretizados, sonhos não realizados, esperas não satisfeitas... Um dos textos mais tocantes que já li.
Há um ponto decisivo no livro sobre a decisão de Drogo permanecer no Forte ou retornar à vida da cidade no qual fiquei a pensar o quanto nos escapa a capacidade de nos maravilharmos com o "simples", com o "tempo", com o "nada" (representado na obra pela planície imutável à frente do forte). Levado às telas em 1976 sob a direção de Valerio Zurlini, O Deserto dos Tártaros tem no elenco célebres atores como Max Von Sydow (O Exorcista, O Sétimo Selo), Giuliano Gemma (O Dólar Furado, Tex) além de trilha sonora do monumental Ennio Morricone. Um conselho: a experiência profunda do livro deve, em minha opinião, vir antes da visualização do filme. O Deserto dos Tártaros já figura entre os melhores livros que li em minha vida. Sua infinita beleza, seus trechos profundos sem serem (em nenhum momento) cansativos revelam até onde a escrita pode chegar em sua jornada abstrata pela alma humana.
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The Red Tower - Óleo sobre Tela (Museu Guggenheim) |
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