Numa espiral positiva de lançamentos, os últimos anos têm sido recheados de grandes edições. Sobretudo no âmbito das pequenas editoras que, por meio de financiamento coletivo e concebidas de fã para fã, tais edições têm capturado centenas de leitores que há muito gostariam de ver determinadas obras no Brasil. Este recorte abaixo diz respeito ao que eu li em 2023, e não necessariamente ao que foi lançado em 2023. Preparem-se para viagem!
Galo de Briga é uma obra que quero comentar positivamente, entretanto já me lamentando pelo fato da Faro Editorial (Selo Poseidon) não ter ainda confirmado a continuidade da Saga no Brasil. Trata-se de um recorte muito preciso da década de 30, onde a inocência do pré II Guerra Mundial começava a ceder lugar à uma sombria realidade. Assim é também a história, que trata do ocaso de um grande herói, o Galo de Briga, que ao lado de outros heróis que o acompanhavam, começa a ver seu mundo "mais inocente" ruir. Com personagens cativantes, uma estética Art Deco, e um excelente retrato do "espírito do tempo" do pré-guerra, Galo de Briga cativou de primeira. Nos resta torcer para que a editora traga os demais volumes.
Coney Island foi um dos primeiros lançamentos do selo LoroBuono da Editora 85. Uma editora com um excelente trabalho de curadoria dentro do universo Bonelli. Nesse caso, mais um incrível trabalho de ninguém menos que Gianfranco Manfredi (Face Oculta, Adam Wild). Aqui novamente os anos 30 em foco, mais especificamente a atmosfera de alegria e estranhezas de um dos parques mais tradicionais de Nova York, o Coney Island parque, localizado na península de mesmo nome no distrito do Brooklyn. Um lugar palco de uma enormidade de experiências emocionais e destino de uma avalanche de pessoas em busca de escapismo e oportunidades. A obra gira em torno de i) um detetive particular, ii) uma trupe de artistas liderada por um homem verdadeiramente mediúnico, iii) um ex-herói de guerra e ninguém menos que iv) Al Capone. Com um eixo central e várias subtramas, Manfredi amarra todas as pontas soltas com maestria com seu costumeiro apuro historiográfico. Assim, o autor constrói todo um pano de fundo que garante um experiência imersiva ao leitor. Um grande gol da Editora 85!
Gus foi um lançamento de alguns anos atrás da Editora Sesi. Dividido em 4 volumes, trata-se de uma criativa e subversiva abordagem do velho oeste americano. O protagonista Gus faz parte de um trio de foras-da-lei, entretanto, o autor, Christophe Blain, subverte o gênero ao mostrar o costumeiro e hermético universo masculino dos filmes de Bang-Bang a partir de fragilidades afetivas que todo homem possui, ainda que disfarçadas por estereótipos brucutus. A proposta é um comédia de afetos não correspondidos e aventuras amorosas truncadas, recheadas de tiroteios, assaltos e brigas de saloon. O resultado é divertido e, para mim, foi um exercício de desconstrução muito interessante do gênero. Como é um lançamento de alguns anos, recomendo àqueles que forem garimpar HQs ou, quem sabe, solicitar a republicação por alguma editora.
O Procurador é outra publicação com a assinatura de
Gianfranco Manfredi a receber destaque entre minhas leituras deste ano. Lançada com o primor e cuidados tradicionais da Editora Pipoca e Nanquim, a obra é um recorte da segunda metade do século 19 nos EUA, a época tradicional dos filmes de Faroeste. Entretanto, o protagonista aqui é outro, ou seja, o exímio atirador e o centro da trama não é o
pistoleiro fora-da-lei, pelo contrário, na verdade é o aparente "almofadinha" empregado das tradicionais empresas da época. A história é leve, e não tão profunda em seus nuances históricos como em outros trabalhos de
Manfredi. Mas é envolvente, violenta, com pontos precisos de humor e fidedignidade ao seu tempo. Ótima leitura. Excelente HQ.
Hellnoir é outro destaque Bonelliano de 2023. Um Noir diferente, ao mesmo tempo que possui todos os elementos característicos do gênero. A diferença é que se passa no pós vida, em uma cidade (Hellnoir) que, em tudo, se parece com um purgatório. Há castas vampíricas e demoníacas de seres espirituais, policiais demoníacos corruptos e, em meio a tudo isso, almas que chegam desorientadas e são presas fáceis para todo tipo de criminosos. O protagonista é o detetive Melvin Soul que consegue manter uma estranha relação com sua filha ainda viva e ainda possui um tênue senso de justiça. Uma interessante sacada é que coisas que temos em nosso mundo e que representam conceitos espirituais, tais como, velas, incenso, água benta, são itens extremamente perigosos para todos os seres espirituais de Hellnoir, e por isso quase inexistentes naquela realidade. Uma história de terror-noir ao melhor estilo Bonelli.
Impossível descrever o que o autor Marc-Antoine Mathieu faz na história de Julius Corentin Acquefacques, protagonista de O Prisioneiro dos Sonhos. História dividida em 3 volumes atualmente publicados pela Editora Comix Zone no Brasil. Mistura de epopeia Kafkiana com elementos profundamente oníricos e simbológicos. Mathieu usa de metalinguística, quebra da 4ª parede, estruturas gráficas e até mesmo da concretude do papel no qual está impresso a história para completa-la. O resultado é uma obra modelável, fluida e que brinca com o senso de realidade do leitor. Por algum motivo que me escapa, acabei iniciando a leitura pelo volume 2 (O Processo), e não pelo volume 1 (A Origem). Mas pelo que pude depreender, a narrativa da história é tão surreal, que não há perda em fazer esta inversão. O último volume (O Começo do Fim) já foi lançado em 2023 no Brasil. Uma obra que precisa ser analisada em suas camadas de significados, e debatida em círculos de leitores. Uma experiência transcendente com um caráter circular e sutilmente opressiva. Excelente!
Vampiros da Meia-Noite foi um lançamento e uma das minhas mais agradáveis leituras do ano. A obra, lançada pela Editora
Skript em parceria com a Quadriculando, é um quadrinho que reconstrói o roteiro do filme perdido
London After Midnight de 1927 (
Vampiros da Meia-Noite no Brasil). O filme foi perdido em um incêndio em 1967, que destruiu parte dos estúdios da MGM, e se tornou um
Santo Graal para cinéfilos e estudiosos em todo mundo.
London After Midnight trazia o ator das mil faces
Lon Channey e o diretor
Tod Browning (Drácula (1931) e
Freaks (1932)), e ao que tudo indica era realmente uma obra de arte, uma vez que a adaptação para a HQ, feita por
Enrique Alcatena (ilustrador) e
Gonzalo Oyanedel (jornalista), descortina um roteiro criativo e original. Um roteiro, aliás, baseado no conto "The Hypnotist" do próprio diretor
Tod Browning. Ao ler a obra, o leitor experimenta uma estranha sensação metalinguística, pois analisando-se retroativamente temos uma HQ baseada num filme (que foi perdido) e que, por sua vez vinha de um roteiro baseado em um conto. Além desta sensação, percebemos se tratar de algo raro, perdido, longínquo, e que tenta nos alcançar após quase 100 anos. Fascinante!!
A
Trilogia Gatilho em edição completa da Editora Pipoca e Nanquim, é um faroeste na melhor concepção do gênero. Desenhada por
Pedro Mauro (brasileiro que vem recebendo justo e merecido reconhecimento), a obra propicia um mergulho no velho e bom
bang-bang, ao mesmo tempo que traz a sutil lembrança de obras setentistas, época em que
Mauro já estava em atividade. Uma excelente leitura do ano!
Falar bem de Ken Parker é realmente uma redundância! O personagem vem sendo publicado em ordem cronológica em edições capa-dura dignas de colecionadores pela Editora Mythos. Felizmente temos a promessa de publicação de toda a saga pela editora, algo que foi feito apenas uma vez no Brasil pela Editora Cluq, entretanto de forma muito lenta e com tiragens baixíssimas. Muitos leitores falavam, em seus comentários nas redes, o quão bom era esse personagem criado por Giancarlo Berardi e ilustrado por Ivo Milazzo, baseado nisso eu tinha muita expectativa e, por isso mesmo, medo de me frustrar. Mas esse, definitivamente, não foi o caso de Ken Parker, um Western situado na primeira metade do século 19, antes da Guerra Civil norte americana. Neste número 4 temos o fechamento do primeiro grande arco do personagem. Muita ação, significado histórico e lealdade à época. Maravilhoso!
Em geral, tudo que sai do Motoqueiro Fantasma me interessa. Acho o conceito do personagem muito forte, principalmente pela ideia de representar um conceito. Quando tentaram explicar quem ele era a partir de uma perspectiva celestial/bíblica, achei que houve uma certa perda de sua estrutura dramática. Prefiro pensar nele como a encanação de um conceito, tal qual personagens como Sandman e Monstro do Pântano, ambos da DC. Trilha das Lágrimas é uma boa história. Trata-se de um voo criativo de Garth Ennis com objetivo de dar sentido diferente ao Cavaleiro Fantasma original da Marvel (teoricamente um primeiro hospedeiro para o Espírito da Vingança). A arte de Clayton Crain impressiona muito. No encaminhamento final da história tive e impressão de Ennis se perder um pouco na condução da trama, mesmo assim foi um destaque.
Depois de muito relutar em conhecer o universo de Júlia de Giancarlo Berardi (sim, o mesmo de Ken Parker) cedi aos diversos comentários favoráveis de pessoas que respeito. Não poderia ter ficado mais satisfeito. Meu aparente desinteresse pela publicação por se tratar de um formato menor, preto e branco e com uma personagem com características delicadas e frágeis desaparece completamente à medida em que Berardi nos apresenta a brutal realidade por trás das mentes criminosas. Júlia Kendall, traz o contraste perfeito entre uma aparência frágil (inspirada na atriz Audrey Hepburn) e sua vontade de entender o modus operandi da "mente criminosa" e o universo dentro do qual tais mentes operam. Berardi fez uma viagem acadêmica profunda no universo da criminologia, estudando formalmente em ambientes acadêmicos. O que lemos pela boca da Profa. Júlia (ela também uma acadêmica) são informações concretas e reais acerca da área da criminologia. Minha estreia como leitor foi, por um acaso, em uma série que traz Júlia em sua época de estudante, trata-se portanto de um prelúdio à vida adulta da personagem. Recomendo muito mesmo à todo leitor inteligente e em busca de um universo adulto, crível e cheio de mistério e reviravoltas.
Outro universo que relutei muito em entrar foi o dos quadrinhos "mudos" (sem falas). Porém, acabei dando uma chance ao suíço natural de Zurique,
Thomas Ott, que com sua robusta arte baseada em hachuras conseguiu capturar-me completamente. Ler, ou melhor, acompanhar a trama de
A Floresta foi uma epifania. Senti a obra me tocar numa profundidade que há muito não experimentava. Em 2023 sentei-me numa poltrona em casa, coloquei ao fundo
Chopin e abri
A Floresta. Como se tivesse seguido os passos corretos para um ritual secreto, minha mente literalmente explodiu. Uma sequência de imagens que gritavam para escapar das páginas para entrar em nosso in/consciente profundo. Se você já vivenciou uma perda na família, ou possui esse sentimento de ausência dentro de si, a obra é para você, pois trata disso. Depois de
A Floresta estou determinado a comprar todas as obras de
Ott, que recentemente teve mais uma lançada no Brasil pela
DarkSide Books, O Número 73304-23-4153-6-96-8.
O longa HQ
Crime e Poesia foi um
achado! Um
achado que muitos deveriam encontrar. A triste, reveladora e transcendente história de
Matt Rizzo, um sobrevivente dos violentos bairros ítalo-americanos dos anos 1930 que, após uma malfadada experiência criminosa perde a visão.
Rizzo amargaria anos e anos na prisão onde, em um ambiente hostil e completamente na escuridão, encontraria a luz a partir de
Dante Alighieri. Uma história real que possui como pano de fundo uma outra história criminosa real, porém mais hedionda, que foi o crime de
Leopold & Loeb em 1924. A história é narrada pelo filho de
Matt,
Charlie Rizzo que, por sua vez, a contou ao autor de
Crime e Poesia,
David L. Carlson. Assim, como
Maus, a história de
Matt Rizzo não poderia ser contada por nenhuma outra mídia a não ser mesmo os quadrinhos. A arte visceral de
Landis Blair combina com o ambiente violento e ao mesmo tempo transcendente dentro do qual
Matt Rizzo viveu. Uma obra maravilhosa que pode trazer aquilo que você está procurando em sua vida.
Última obra do gigante
Will Eisner,
O Complô - A História Secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião, trazem um trabalho denso, muito diferente de outros do autor.
Eisner reconstrói a origem dos mentirosos
Protocolos do título. Um conjunto de escritos que foram, e ainda o são, usados para fomentar o antissemitismo. Um documento que deu base para diversos expurgos de judeus pelo mundo. Com raízes num livro (
O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu) publicado na França em 1850 pelo ativista político
Maurice Joly,
Os Protocolos dos Sábios do Sião tiveram sua construção a partir da Rússia czarista e atingiu centenas de nações. Em
O Complô,
Eisner consegue de forma genial reconstruir a história deste odioso documento e lança luz nas sementes de ódio sempre prontas para eclodirem, bastando um documento, sendo ele falso ou não.
Não me canso de me surpreender com a
Coleção Tex Gold da Editora Salvat. Aliás, a surpresa é maior com
Tex, o ranger Bonelliano que infelizmente demorei demais para conhecer. Em
O Vale do Terror (
La Valle del Terrrore), edição Nº 26 da coleção,
Cláudio Nizzi mostra que é realmente um dos grandes roteirista do personagem. A história é o último trabalho do desenhista, também italiano,
Roberto Raviola (conhecido como Magnus). Envolvente e graficamente belo, a obra coloca
Tex e seu parceiro
Kit Carson em um microcosmo familiar cheio de drama e mágoas. Ótima leitura e com certeza destaque.
O ano se fecha novamente com ele,
Gianfranco Manfredi, com seu personagem
Adam Wild, mistura de explorador e libertador. Um personagem solidamente construído a partir de figuras reais, como o explorador
David Livingstone, primeiro europeu a percorrer toda a África Negra. Com uma construção histórica sólida e fiel à realidade vivida pelas tribos africanas assoladas pelos caçadores e mercadores de escravos na segunda metade do século 19,
Adam Wild é fascinante. É impossível não relacionar a obra à outra a pérola da literatura universal que é
O Coração das Trevas, do polonês
Joseph Conrad. Fruto das experiências vividas por
Conrad no coração da selva africana,
O Coração das Trevas é um atestado da crueldade, violência e loucura humanas, tendo sido adaptado por
Francis Ford Coppola em 1979 em seu
Apocalypse Now.
Adam Wild é um exemplo de literatura Pulp da melhor qualidade com fortes raízes na realidade histórica.
Estes foram meus destaques dentre minhas leituras de quadrinhos em 2023. Quais foram as suas? Se quiser deixe nos comentários!