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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Pílula Gráfica #35: Bruxas, Minhas Irmãs - (2023) - Uma Antologia de Chantal Montellier


Depois de Social Fiction (Ed. Comix Zone), a francesa Chantal Montellier tem outra obra publicada no Brasil, agora pela Editora Veneta. Trata-se de Bruxas, Minhas Irmãs. Uma obra densa, na qual a autora traz exemplos de mulheres que ao longo da história foram acusadas, julgadas e, na maioria das vezes, condenadas como bruxas. Montellier conta essas histórias de uma maneira muito, mas muito diferente do usual. Ela exige do leitor certo preenchimento de pequenas lacunas narrativas, o que, por sua vez, confere linhas ocultas dentro da história. Assim, o sugestionamento se insinua e deixa a obra mais profunda, aludindo a temas como sexismo, misoginia, obscurantismo, racismo, intolerância, entre muitos outros. O desenho é da própria autora e traz outra camada de profundidade, já que é melancólico, desolador e estranhamente alinhado a atmosfera trágica. Determinadas expressões faciais específicas são guardadas para certos personagens-chave nas diversas narrativas. São rostos que confrontam o leitor, que por sua vez se sente indagado pelas personagens, gerando sensação de sermos coparticipes nesse grande teatro de horror. Mas há mais coisas no âmago da obra. A autora traz uma interpretação subjacente ao fenômeno da "caça às bruxas", e com o qual eu concordo. Há dentro da psiquê masculina um deslumbramento natural pelo sexo feminino, e isso não é apenas subjetivo, é biológico também (obviamente), porém tal deslumbramento natural, fragiliza de alguma forma a hermética e belicosa natureza dos homens. Dentro de um contexto histórico, tal deslumbramento/admiração/feitiço pela beleza e natureza femininas, é muito difícil de ser admitido, sobretudo dentro de sociedades calcadas por símbolos e estereótipos de poder masculino. Admiti-lo seria uma exposição tristemente interpretada como "fraqueza". A solução sempre foi a imposição de modelos de vida para o sexo feminino dentro dos quais a mulher deve ser mantida "controlada" e "policiada". Qualquer movimento na direção oposta seria permitir que tal beleza ou "feitiço" crescesse a tal ponto de subjugar o status quo predominante. Figuras que eventualmente destoassem deste padrão seriam estereotipadas com a marca do oculto, do subversivo e do "viver maligno". Esta tônica parece permear a antologia de Bruxas, Minhas Irmãs. Dos relatos presentes na obra Fogo na Floresta e De um Diabo a Outro me marcaram bastante, sendo o primeiro deles sobre Camille Claudel. E por falar em símbolos, Chantellier faz grande uso deles. Cada página traz diversas imagens simbólicas cuja intepretação me escapou. Para um leitor mais perspicaz é possível que a obra cresça ainda mais ao dimensiona-la no contexto destes símbolos. A Edição da Veneta tem capa dura, papel de alta gramatura e um detalhe muito bem vindo, as letras são da famosa, e querida para muitos leitores de quadrinhos, Lilian Mitsunaga.

Página da história: Eva Desloups

Página da história: Eva Desloups

Um comentário:

  1. Marcelo,

    Sua leitura de Bruxas, Minhas Irmãs é um mergulho preciso e afetivo desses que revelam não só a força da obra, mas também a generosidade de quem lê com o coração aberto e o olhar crítico bem afiado. É comovente como você resgata, em meio à dureza histórica do tema, esse fio delicado que atravessa o tempo: o medo do feminino livre. A beleza que encanta e ameaça, o feitiço que não pode ser controlado, então precisa ser punido. Suas palavras ressoam como um barulho de tantas vozes silenciadas e ao mesmo tempo como um gesto de reparo.
    Chantal Montellier nos entrega camadas, símbolos, expressões que não se explicam mas nos interrogam. E você, ao comentar, nos convida a ficar diante desses rostos e não desviar. Que privilégio te ler. Obrigada por partilhar com tanta lucidez e cuidado.

    Abraço com admiração,
    Fernanda

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