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sábado, 31 de agosto de 2019

Resenha: Flores para Algernon


A doença mental é ainda um continente inexplorado em se tratando do público leigo. Talvez até mesmo para a psiquiatria moderna. É difícil imaginar que apenas o déficit de alguns mililitros de hormônios ou substâncias seja o que separa uma mente "normal" de uma mente pouco ou nada capaz. Que apenas um determinado desequilíbrio eletroquímico condene alguém à uma vida dentro de uma caverna interior, longe de percepções, sensações e sentimentos que nos invadem continuamente. Em 1959 o autor Daniel Keyes (1927-2014) lançou o livro Flores para Algernon, recentemente publicado no Brasil pela Editora Aleph (novamente a Aleph!), um relato intimista, poético e real do universo que circunda o déficit mental. Vencedor do Prêmio Nebula Awards de 1967, o livro conta a história de Charlie Gordon, um homem que desde sempre viveu e sofreu a clausura do déficit cognitivo. Flores para Algernon é uma narrativa sólida e envolvente do que vai dentro de alguém que vive assim.


O Algernon do título é, ninguém menos que um ratinho, que também possui importante papel na narrativa. Mas qual o fio condutor do romance? Charlie Gordon, o protagonista, por uma série de razões acaba sendo submetido à uma inovadora técnica cirúrgica e psicoterapêutica por meio da qual tem seu intelecto, que sempre fora reduzido, impulsionado à níveis extremamente elevados. Keyes se concentra de forma envolvente na gradativa mudança de percepção de Charlie diante do que lhe acontece. Narrado em primeira pessoa a história se utiliza, como ferramenta narrativa, de relatórios que o próprio Charlie precisa fazer no âmbito da experiência à qual está sendo submetido. Apesar da opção perigosa do autor quanto a forma de narrar a história, ela funciona bem e logo você está totalmente integrado à leitura e ao mundo interior de Charlie.

Daniel Keyes

Embora ancorado em uma premissa ficcional (a cirurgia inovadora a que Charlie é submetido), o livro narra uma realidade extremamente presente e concreta: a vida do deficiente mental. Quando Charlie torna-se inteligente, o autor aproveita para trazer a tona lembranças esquecidas do protagonista, toda intimidação, ridicularizarão e discriminação (velada ou não) que sofreu. Tais lembranças e a noção do novo "eu" dentro de Charlie fazem com que mergulhemos no seu interior e experimentemos a esmagadora noção do mundo como ele é. Embora o protagonista se torne extremamente inteligente, fica muito claro que inteligência (razão) e emoção são elementos distintos da psiquê humana. Enquanto o primeiro tem a ver com crescimento e expansão neuronal, o segundo necessita de experiências prévias para ser construído, trabalhado e amadurecido. Nesse sentido, Charlie experimenta agora uma outra dor, a de se ver incapaz de lidar com o turbilhão de emoções que se fazem pela primeira conscientes, uma vez que não teve o amadurecimento emocional pelo qual deveria ter passado.


Adaptado para o cinema em 1968, Flores para Algernon foi chamado apenas de Charly nos cinemas americanos, e no Brasil recebeu o nome de Os Dois Mundos de Charly. O filme rendeu o Oscar de melhor ator para Cliff Robertson (sim ele mesmo, o Tio Ben do 1º filme do Homem-Aranha do Diretor Sam Raimi) no papel de Charly Gordon. Voltando ao livro, a obra impressiona pelo alto conteúdo psicológico muito bem conduzido por Daniel Keyes, que não caiu na armadilha de torna-la demasiadamente dramática ou emocional, e assim transforma-la no que comumente chamam, pejorativamente, de "dramalhão". Esta habilidade de Keyes está, possivelmente, ligada à sua formação acadêmica. O autor era Psicólogo pelo Brooklyn College. O livro poderia muito bem servir de objeto de estudo ou análises acadêmicas.

O Ator Cliff Robertson no papel de Charlie Gordon 

Uma interessante curiosidade a respeito de Daniel Keyes é que ele era colega e associado a Martin Goodman, simplesmente o criador da Editora Atlas, a Editora precursora da Marvel. Keyes foi editor da Revista Pulp Marvel Science Stories e chegou a ser editor da Marvel sob a tutela de ninguém menos que Stan Lee. Ele também chegou a escrever histórias de Horror e Ficção Científica para a editora nos anos 50, época em que o Boom da Era de Prata dos Super-heróis ainda não havia se iniciado.


A curadoria da Editora Aleph acerta mais uma vez ao trazer Flores para Algernon para o Brasil. Um livro a ser lido, discutido e apreciado em tempos como o nosso em que a tecnologia, o individualismo e a polarização de discursos ideológicos diminuem o tão importante exercício da alteridade.

Um grande abraço à todos!!

2 comentários:

  1. Que resenha gostosa de se ler, Marcelo. Como sempre, belo texto. Me deixou curioso quanto ao livro, mas não o comprarei porque a fila de leitura anda extensa.
    Abraços!

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    Respostas
    1. Caro amigo Kleiton!

      Muito obrigado pela presença e comentário. Flores para Algernon entrou para meu redar de maneira despretensiosa. O livro é intimista em sua condução. Sendo bem interessante para aqueles que possuem um olhar especial para o interior.

      Entendo perfeitamente sua justificativa... rs rs Minha pilha também é gigante.

      rs rs

      Abração!

      Marcelo

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