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domingo, 17 de setembro de 2017

O Eternauta


Angustiante, claustrofóbico, sem oferecer quaisquer concessões a seus personagens ou aos desfechos da narrativa, O Eternauta é uma história de ficção científica publicada entre 1957 e 1959. Incrivelmente inteligente, sem clichês e com um final elegante e surpreendente, que oferece inclusive a explicação do que aconteceria se eu voltasse ao passado para encontrar a mim mesmo, O Eternauta estava à frente de seu tempo em 1959 e poso garantir (como alguém que leu muita ficção científica) está também à frente do nosso tempo. A obra foi escrita por Héctor Germán Oesterheld e desenhada pelo fantástico Francisco Solano López, ambos Argentinos. Não posso escrever sobre O Eternauta sem deixar registrado rapidamente em um parágrafo a trágica história do autor Héctor G. Oesterheld. A humanidade deve isso a ele.

Héctor G. Oesterheld e Família - Quase todos assassinados

Em 1976 o General Jorge Rafael Videla chefiou o Golpe Militar na Argentina que depôs a Presidente Isabel Perón. Neste ano, Oesterheld já havia publicado O Eternatuta há muito tempo e se aproximara da resistência política contra o regime ditatorial de Videla. No dia 27 de Abril de 1977 haveria uma reunião da resistência que fora descoberta pelos soldados de Videla. Todos os participantes foram avisados para não ir, menos Héctor, que apareceu no local marcado e foi preso. Todos acharam que Héctor iria delatar os companheiros sob tortura, mas isso nunca aconteceu. Mesmo os leitores nunca ficaram sabendo do desaparecimento de Héctor. As 04 filhas de Héctor (Estela Inés, Diana Irene, Beatriz Mara e Marina) também haviam optado pela resistência política e viviam na clandestinidade. A caçula Marina foi a primeira a ser assassinada pelo regime e a única que Elsa, esposa de Héctor, conseguiu enterrar. Depois do assassinato de Marina, foram assassinadas (também por Videla) Diana, na época grávida do 2º filho, e seu marido. Logo após foi a vez de Beatriz ser assassinada, também grávida (de 8 meses). A filha mais velha (Estela) foi a última a morrer junto com o marido, também assassinados. Héctor foi assassinado por último, possivelmente para que soubesse que sua família havia sido praticamente dizimada. Elsa, sua esposa conseguiu criar 01 neto (Martín), filho de Estela, e encontrou no neto a força para entrar no movimento de resistência Abuelas de Mayo (Avós de Maio), união das avós dos desaparecidos durante o regime de Videla. O regime do sanguinário Videla perdurou até 1983. A história de Héctor G. Oesterheld precisa ser conhecida e propagada para que coisas assim não voltem a acontecer.

Héctor Germán Oesterheld

O Eternauta deve ser lido não em função do sacrifício de Héctor, mas porque a obra tem brilho próprio. E que brilho!! É difícil imaginar que alguém em 1959 tenha imaginado uma história tão claustrofóbica, real, contemporânea e angustiante como O Eternauta. Embora descreva um fenômeno mundial, a história consegue manter o foco em apenas alguns personagens: Juan Salvo (O Eternauta do título), Elena e Martita Salvo (esposa e filhinha de Juan), René Favalli, Alberto Franco, Pablo Ledesma e Ruperto Mosca. A história é narrada por Juan (O Eternauta) ao próprio roteirista (Héctor G. Oesterheld) e, portanto o leitor sabe que o desfecho da história envolverá, possivelmente, muita dor.


Na história, um grande e terrível acontecimento rouba da humanidade qualquer esperança de se perpetuar como espécie na Terra. Um evento que em seu início já produz milhares de mortes. Os poucos que sobram precisam lidar com questões práticas como sobreviver, se alimentar e tentar descobrir quem são os responsáveis por tamanha agressão à nossa raça. A partir daí o autor começa a aumentar a ação que, em vários momentos coloca os personagens principais em situações literalmente inescapáveis. Mas mesmo quando escapam há um custo, e este é um dos brilhantismos do autor, ou seja, qualquer coisa que nos acontece nos muda, tem um preço e nos rouba algo.


Portanto, se você espera ver uma história de saídas fáceis, como se você já imaginasse para onde a história iria, não é o caso aqui. As saídas para os personagens os colocam dentro de situações e cenários até piores que os iniciais. Por ser uma obra escrita em 1959, a forma com que os personagens se tratam é diferente da atual. Não espere por palavrões e expressões de baixo calão. É necessário que entendamos como livros, revistas e a mídia em geral se expressava na época. Na verdade a ausência destas coisas (palavrões e desrespeitos entre as pessoas) não faz absolutamente falta nenhuma. Isto evidencia como este expediente muito em voga hoje em dia (dar relevância à uma obra a partir da quantidade de sangue, palavrões e desrespeitos) é na verdade uma forma de encobrir a falta de talento do roteirista.

A Tomada do Estágio do River Plate

Héctor Oesterheld fez questão de situar a ação em O Eternauta em ruas, praças e monumentos da Grande Buenos Aires. Isto fez com que os leitores da época e das décadas seguintes se familiarizassem e desenvolvessem grande apresso por ela. Atualmente O Eternauta é um clássico dos Quadrinhos Argentinos e, na minha opinião, dos quadrinhos mundiais. Ao ambientar a obra em lugares conhecidos, o autor faz com que o leitor entenda a angústia dos personagens que há pouco  passeavam por aqueles mesmos lugares vivendo suas vidas, e hoje tudo aparece devastado. Outro efeito no leitor é que, sem querer, ele começa a imaginar os lugares que conhece totalmente devastados, tal é a atmosfera que o autor dá às ações. Apesar de não morarmos em Buenos Aires e não conhecermos muitos dos locais mencionados, as reflexões dos personagens nos colocam no mesmo lugar que eles, imaginando a angústia caso acontecesse a mesma história onde moramos.


A arte de Francisco Solano López é perfeita para o clima onírico e de fantasia que se instaura na mente das pessoas envolvidas na história. É impressionante o controle narrativo de López, que consegue expressar nas imagens a fluidez do texto de Oesterheld. Não posso deixar de mencionar coisas que me surpreenderam ao ler a história. Uma delas foi a aparência dos "Gurbos", criaturas que se revelaram em um determinado momento da obra e que, se o leitor observar de perto, é muito parecido com as gigantescas máquinas de 04 patas vistas em Star Wars. Só que com um detalhe, O Eternauta foi escrito duas décadas antes da estreia de Star Wars, ou seja, podemos muito bem ver que muitos beberam na fonte inspiradora que é O Eternauta.


No Brasil não temos (pelo menos que eu conheça) precedente narrativo como o visto em O Eternauta, infelizmente. Carecemos de uma epopeia como essa. É difícil saber o porque e talvez eu não tenha conhecimento nem credencial para supor o porque o Brasil nunca ousou realizar uma obra desta envergadura. Os Argentinos se orgulham muito de O Eternauta. No Bairro de Puerto Madero em Buenos Aires é possível se deparar com a Estátua de Juan Salvo trajado como O Eternauta. Puerto Madero é um bairro que possui lugar importante na história, e nada mais justo do que situa-la ali.

Estátua de O Eternauta em Buenos Aieres - Fonte: http://www.diariodecultura.com.ar/

O desalento no olhar de Juan Salvo - Estátua em Puerto Madero - Buenos Aires

Placa aos pés da Estátua - Fonte: http://ceaa.blogspot.com.br/

Quando Héctor G. Oesterheld foi preso em 1977, chegava às livrarias O Eternauta 2. Volume escrito e desenhado novamente pelos parceiros Oesterhel e López. Héctor não veria a continuação de sua obra chegar às livrarias, pois já estava preso e sendo torturado. Na época, na Europa, alguns roteiristas tentaram fazer alguma coisa por ele, mas sem sucesso. O regime de Videla foi eficiente em manter muitos Argentinos à margem do que acontecia nos porões de seu país. Ainda mais depois que, em 1978, a Argentina sagrava-se campeã da Copa do Mundo de Futebol. No Brasil a obra era inédita em sua versão completa até que, em 2012, a Editora Martins Fontes lançou a obra original, bem como sua continuação. O Eternauta 1 e 2 ainda podem ser encontrados em vários locais no Brasil, inclusive na Amazon Brasil.


O 1º volume de O Eternauta possui um dos finais mais interessantes que já li. Não vou conta-lo aqui, mas saiba que você não consegue saber nem antever o desfecho da História mesmo faltando 01 página para o final. E o mais interessante: este final não decepciona!! Em apenas 01 página Héctor consegue dar um encaminhamento na história que é perfeito!! Você não se decepcionará também.

É isso amigos! Espero em breve trazer uma outra matéria abordando o volume 2 de O Eternauta. Forte abraço!

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Opa!! Obrigado Veloso!!

      Agradeço a presença e o comentário. Fico mais contente ainda que tenha apreciado a matéria.

      Apareça sempre!

      Abcs!

      Marcelo

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  2. tá na minha lista há tempos.

    excelente post!

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    Respostas
    1. Leia sim!

      Quando terminar me avise o que achou. É uma HQ longa. Se não me engano são 256 páginas no estilo tiras. Mas vale a pena a persistência.

      É dinâmica e ágil.

      Se você gosta de ficção científica sobretudo no estilo Twilight Zone (dos anos 50), vai gostar muito!

      Abcs!

      Marcelo

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  3. blz marcelo?

    tenho o eternauta volume 1, gostei da história e dos desenhos mais achei a leitura muito cansativa. Demorei um bom tempo pra conseguir comprar esta edição, pelo fato de ser capa mole a mesma é meio desajeitada pra ler deitado.
    de qualquer forma é um material excelente, pra quem gosta de quadrinhos é altamente recomendável.
    se não me engano a obra che os últimos dias de um herói publicada no brasil pela conrad com texto do Oesterheld e arte dos irmãos breccia foi enterrada em algum lugar que eu não lembro e só foi publicada apos seu assassinato.
    ouvi esta história em algum lugar já faz um bom tempo, também é uma boa HQ, recomendo.

    abraço

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    Respostas
    1. Olá Gustavo...

      Blz amigo!?


      O encadernado é longo mesmo. A sensação que você sentiu pode estar associada ao estilo "tiras" na qual a HQ foi publicada. Entendo você sim.

      A manipulação do encadernado é difícil por ser no estilo "paisagem" as páginas e a capa não ser dura. Tornando-a um pouco desajeitada. Até entendo a escolha da Martins Fontes em manter no estilo "paisagem" para preservar o formato tiras da obra original. Mas com certeza pedia uma capa dura. Talvez se fosse lançada hoje ela sairia na capa dura.

      Esta HQ que você cita eu não conheço mas parece muito interessante!!

      Valeu amigo!!

      Marcelo

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