"Quem conhece o mal que se esconde no coração dos homens?". Se você é um leitor de quadrinhos, você sabe a qual personagem esta pergunta está ligada. No entanto, diferente do que você está pensando em responder, a resposta verdadeira para esta pergunta seria, sem dúvida nenhuma, a seguinte: BRODECK conhece. O Relatório de Brodeck é uma HQ europeia que chegou ao Brasil no ano passado. A obra destila e desperta as mesmas sensações e emoções que grandes obras, tais como, MAUS de Art Spiegelman e A ARTE DE VOAR de Antonio Altarriba conseguiram. E, para quem já as leu, sabe que este tipo de comparação vale muito. Embora violenta, a história de O Relatório de Brodeck é aterradora não exatamente por causa disso, mas por descer nos silenciosos porões escuros da alma humana. E esta viagem se dá por meio dos diálogos e imagens do artista Emmanuel Larcenet. Dentre as diversas reflexões possíveis para a obra, podemos dizer com toda certeza que o drama das relações humanas, em toda a sua virulência e profundidade, pode ser vivenciado mesmo em microambientes, em microcosmos isolados e perdidos, como é o caso do vilarejo no qual a história se passa. E talvez, justamente por este isolamento, consigamos sentir as pessoas dentro da obra em toda sua plenitude, livres de tantas amarras tecnológicas e perfis fakes tão comuns em nosso tempo. Na obra encaramos o humano em toda sua beleza e vilania.
Fazendo apena uma breve contextualização (sem spoilers), a história se passa em um vilarejo em um país europeu não exatamente definido, no entanto muito próximo da Alemanha ao que tudo indica. O período seria logo após a 2ª Guerra Mundial. Brodeck é um dos moradores deste vilarejo e mora em uma cabana afastada da comunidade local. Na cabana vivem Brodeck, sua esposa (que possui aparentemente uma doença mental cuja origem será revelada mais à frente na obra), sua filhinha e uma velha que salvou Brodeck quando este ainda era um pequeno garotinho sobrevivente de uma vila destruída. Logo nas primeiras páginas o enredo principal se revela. Brodeck vai à vila comprar manteiga e ao entrar no único armazém do local se depara com vários homens do vilarejo com expressões estranhas e olhos cheios de desconfiança. Brodeck logo percebe o que acabou de acontecer no local. Os homens haviam acabado de cometer um assassinato, e a vítima era aquele que todos conheciam como o "Anderer", palavra do dialeto local que significa "desconhecido", algo como "forasteiro". O Anderer havia chegado à vila algum tempo antes e desenvolvido uma relação com o povo local que oscilava entre curiosidade e extrema desconfiança.
Brodeck não participara do assassinato, mas havia chegado ao local no momento errado e na hora errada e, talvez por ser um dos únicos moradores da vila que sabia escrever, receberia a partir daquele momento a incumbência de escrever um relatório a respeito do que acontecera desde a chegada do Anderer até aquele fatídico desfecho. Acuado e intimidado à todo momento pelos homens do vilarejo, Brodeck precisa escolher entre aquilo que realmente aconteceu, e aquilo que a população quer que seja escrito. Neste doloroso processo, Brodeck recorda em flash-backs os eventos que circundaram a chegada e a vida do Anderer na aldeia, ao mesmo tempo que se lembra de seu período em um Campo de Concentração Nazista. Desta forma a narrativa se passa em 3 frentes: 1) a atual, na qual Brodeck escreve seu relatório e continua com sua vida; 2) a anterior, em que eventos envolvendo o Anderer são descritos por meio das memórias de Brodeck; 3) mais anterior ainda, na qual se desenrolam eventos da época em que Brodeck era prisioneiro nas mãos dos Nazistas. Em momento algum o leitor se confunde entre estas 3 frentes, uma vez que o domínio narrativo é perfeito.
A questão central da obra é, sem dúvida nenhuma os instintos humanos e como lidamos com eles em situações extremas. E ao lê-la, vamos descendo a escadaria das masmorras da alma humana. Ao mesmo tempo em que fazemos esta aterradora viagem, somos confrontados com o que há de mais belo no mundo, os pequenos gestos de uma família que se ama, de um homem que mesmo tendo sofrido ao extremo, tenta manter sua bondade e humanidade intactas. Desta ambiguidade nasce uma obra que nos desvenda o intrincado painel que é a mente e a alma humana. Passados alguns dias do término da leitura, consigo refletir também acerca das atitudes das pessoas do vilarejo. Embora, em momento algum eu deseje validar quaisquer atitudes violentas e brutais que os homens do local tomaram, eu fico me perguntando o que EU faria se visse minha família e minha vida serem afrontadas com a violência dos Nazistas. Teria eu a coragem necessária para me erguer contra o duro e brutal punho do dominador? Conseguiria arriscar a vida da minha família e mesmo a minha vida contra o rolo compressor que foi a máquina de matar de Hitler? Responder perguntas assim sentado no sofá ou assistindo TV hoje é fácil. Por isso, ao nos colocarmos no lugar dos habitantes da vila, temos também uma outra forma de pensar a obra.
Esse medo e fragilidade foi vivenciado por todos naquela época. Por isso, peço especial atenção às palavras dos moradores e até do próprio prefeito do vilarejo quando se manifestam durante a ocupação nazista. Tais palavras, se contextualizadas, fazem muito sentido. Embora o ponto central seja a passagem do Anderer pela vila, todo o contexto da Guerra deve ser levado em consideração na obra, já que podemos sentir todo o trauma latente que foi despertado com a passagem do Anderer, e é este trauma latente que é a força motriz das atitudes dos personagens. Até mesmo as atitudes do Anderer, embora inofensivas, podem ter servido de "gatilho" para ressentimentos escondidos e traumas não tratados. Sendo assim, há um texto subjacente na obra. Ou seja, o fato de atitudes serem o tempo todo escondidas, sublimadas, e nunca trabalhadas pelo coletivo, transformam um povo em uma bomba-relógio. O caldo emocional e psíquico que isso gera em um povo é potencialmente perigoso à partir do momento que determinados "gatilhos" são acionados. Xenofobia, racismo, intolerância sobrevêm como uma erupção vulcânica e, qualquer semelhança com nosso tempo atual não é mera coincidência.
Por último não posso deixar de celebrar aqui a arte de Larcenet. A leitura de O Relatório de Brodeck tem que ser feita considerando todos os silêncios que Larcenet pressupõe em cada quadro. Ler esta obra com a mesma voracidade de um consumidor mais desatento, poderá reduzir drasticamente o significado da obra, uma vez que a própria natureza (animais, árvores, neve, arbustos, rios, paisagens...) faz parte da leitura. A ideia do autor parece-me que é fazer da natureza um expectador dos fatos. Tal como o leitor assim o é. Há muitos mistérios escondidos nas páginas e é possível que eu me aventure novamente na leitura de O Relatório de Brodeck na tentativa de decifra-los. Não poderia terminar sem chamar a atenção para os diálogos, mas destaco um que é sobremaneira impactante, a saber, a conversa que Brodeck tem com o Padre da aldeia. Prepare-se!
Bem amigos... Gostaria muito de conversar com alguém que já tenha lido a obra e trocar algumas palavras acerca de suas impressões, uma vez que ela é cheia de percepções que podem ter me escapado. É isso aí amigos! Forte abraço!