Em substituição ao inesquecível (mas também desgastado) selo Vertigo, a DC Comics inaugurou a linha Black Label. Os primeiros lançamentos, possivelmente para impulsionar a iniciativa, envolvem personagens clássicos da editora, como é o caso de Batman - Amaldiçoado. Com roteiro de Brian Azzarello (Coringa, O Cavaleiro das Trevas III - este último ao lado da lenda Frank Miller) e do incrível artista Lee Bermejo (Batman - Noel), a qualidade gráfica é indiscutível. Mas meu ponto aqui hoje é o interessante e obscuro roteiro de Azzarello. Fica claro para mim que há uma clara referência e ligação com a emblemática e seminal HQ A Piada Mortal de Alan Moore. A história envolve claramente o universo místico da DC, e é um verdadeiro prazer se deparar com clássicos personagens mágicos da editora em versões muito interessantes e alternativas. É o caso do Desafiador, apresentado com o corpo com todos os músculos à mostra. Nunca tinha pensado nisso, mas a roupa original vermelha do personagem é exatamente da cor do tecido muscular após dissecação. Uma incrível sacada de Azzarello/Bermejo. Outro personagem repaginado é o demônio Etrigan que, como rimador, tem tudo a ver com um "rapper". Constantine, Zatanna e o Monstro do Pântano também aparecem, porém em versões mais próximas de suas versões do universo tradicional. Considerando o público a que o selo Black Label se dirige, o Batman apresentado mostra não apenas um violência desmedida, mas também uma outra característica que chega a incomodar o leitor e fã mais antigo do Morcego, ou seja, uma descrença e quase total frustração com sua própria cruzada pessoal contra o crime, o que foi doloroso para mim como fã antigo. Mas uma última e mais importante questão que gostaria de refletir aqui é em relação ao desfecho da obra. Embora eu não vá dar spoiler, a questão final fica em aberto para o leitor. O desfecho, embora diferente, emula em certa medida o final de A Piada Mortal de Moore e, ao fazê-lo, abre questões que gostaria muito de debater com alguém que leu a HQ, são elas: 1) Há um ciclo ou vínculo, quase místico, envolvendo esses dois personagens (Batman e Coringa)?; 2) Acabamos por ficar presos pela eternidade às nossas obsessões? Somos definidos por estas obsessões?; O ódio cultivado dentro de nós poderia nos envenenar e nos tornar agressores?... Há várias outras questões subjacentes no texto de Azzarello que gostaria de refletir sobre elas com alguém. Acredito que o final ficará em aberto para sempre, assim como ficou o da HQ de Alan Moore, e é justamente a ambiguidade deste desfecho que nos desconcerta.
sábado, 29 de agosto de 2020
domingo, 16 de agosto de 2020
Pílula Fílmica #10: Dois Papas (2019)
Dois Papas (Dir. Fernando Meireles - 2019) é uma obra com muitas camadas. Há a camada política, ao apresentar a grande intersecção da Santa Sé com aspectos políticos internos (em sua relação com a cúria romana) e externos com outros países. As demandas sociais são claramente escancaradas a partir do sútil retrato da desigualdade mundial. A camada econômica permeia muito as cenas, ao apresentar a perspectiva dos rumos do dinheiro no mundo através dos trechos dos discursos do jovem e velho Bergoglio. Há, no entanto duas outras camadas que são as que tornaram o filme muito relevante para mim. Uma delas é a humana, que nos deixa claro que, se formos sinceros e humildes o suficiente para percebermos nossos erros, a redenção passa a nos acenar. Agora, a última e extremamente interessante camada, é a espiritual. Dentro desta perspectiva há duas cenas que para mim são as centrais na obra. A primeira delas é a cena em que a fumaça da vela apagada por Bento XVI desce, ao invés de subir, em uma referência clara ao conceito espiritual que nossas orações e ações podem subir e serem recebidas (ou não) como um "cheiro" suave por Deus. E a segunda cena é aquela em que a fumaça da vela (ao final do filme) sobe, e não mais desce, em outra clara referência espiritual de que nossos atos internos e externos tem o poder de serem recebidos por um ser Ser Supremo à semelhança dos antigos sacrifícios do Velho Testamento. A sutileza e poder destas duas cenas emolduram a ideia da convivência pessoal genuína com Deus e afasta o filme das intermináveis discussões teológicas e denominacionais que, no fundo, não levaram e não levarão a lugar algum. Não posso deixar de citar a agradável atmosfera dramática criada a partir de um inteligente humor na medida certa, que captura o espectador fazendo-o submergir nos personagens e se identificar com eles. Em tempos em que as "pontes" sociais, econômicas e humanas estão ameaçadas, vejo o filme como uma obra que nos lembra a importância de preservar as pontes existentes, e nos chama à construção de novas.
domingo, 2 de agosto de 2020
Das Estrelas ao Oceano
A editora Martin Claret é a casa de grandes livros já há muito tempo. Sua proposta de lançar clássicos literários em formato de bolso, em capa cartonada, de baixo custo e em pontos de grande circulação é louvável e necessária em tempos de tão baixo índice per capita de leitura. Mais recentemente, no entanto, a editora vem também investindo em um acabamento gráfico mais requintado, sem abrir mão de sua consagrada curadoria. Alguns exemplos desta nova proposta são O Homem Que Ri de Victor Hugo e Grande Contos de H.P. Lovecraft. Desta safra também faz parte Das Estrelas ao Oceano, uma coletânea de 5 incríveis contos de ficção científica de 4 grandes mestres: H.G. Wells, Júlio Verne, H.P. Lovecraft e J.H. Rosny Aîné. Para além do seu conteúdo obviamente de qualidade, o livro é um primor por outras razões, a começar pelo projeto gráfico de um estúdio chamado Manga Mecânica Studios. A linda capa tem toda uma simbologia para quem lê o livro, pois faz referência à cada um dos 5 contos. Além disso, o livro foi impresso em um formato que me lembrou muito as edições do saudoso Círculo do Livro. Empresa que fazia a alegria de leitores pelo Brasil inteiro nos anos 80 com sua revista bimestral a partir da qual podíamos fazer nossos pedidos de livros. Não apenas o formato externo lembra as edições do Círculo do Livro, mas o tamanho da fonte e o papel das páginas.
![]() |
Maravilhoso projeto gráfico do Manga Mecânica Studios |
Os dois primeiros contos que abrem o livro são de autoria do consagrado H.G. Wells. Fica muito patente a grande cautela (que beirava o pessimismo) que Wells tinha em relação ao futuro. Muito desse pessimismo, aliás, se mostrou verdadeiro como viria a provar o Século 20. Em A ESTRELA, Wells nos presenteia com uma história que (acredito eu) deva ter servido de base para Lars Von Trier filmar o seu MELANCOLIA de 2011. A frustração, negação, desolação e melancolia da humanidade diante de um desastre iminente transborda pelas páginas. O 2º conto do autor, ARMAGEDDON: O SONHO, mantém a perspectiva de cautela e certo pessimismo do autor em relação aos rumos da humanidade. Esta característica confere à H.G. Wells a qualidade de observar os homens sob um prisma muito peculiar, o da realidade sem ceder à sentimentalismos.
![]() |
H.G. Wells |
Editado pelo filho de Júlio Verne, o conto O ETERNO ADÃO não é apenas intrigante, mas oferece uma forma diferente de pensarmos o passado e a origem da humanidade. A construção narrativa de Verne é verossímil, sobretudo ao nos oferecer uma interpretação perfeitamente possível para nossas origens, além de expressar o orgulho e a soberba humana diante de seus próprios feitos, o que nos conduz ao esquecimento de que somos apenas mais uma espécie residente nesta casa chamada Terra. Influenciado pelas descobertas da época, e pela construção Darwinista da realidade, Verne nos apresenta um conto instigante e intrigante, com a ciência a emoldura-lo de forma brilhante.
![]() |
Júlio Verne |
A pérola da coletânea para mim é o conto O TEMPLO, de H.P. Lovecraft. Dono de uma fama póstuma incrível, Lovecraft é o tipo de escritor que, assim como seu contemporâneo e criador do Conan, Robert E. Howard, acabou sendo mais conhecido por meio das obras que inspirou. Embora eu soubesse da importância de Lovecraft para o gênero terror e ficção, para minha vergonha eu nada havia lido dele ainda. Pois ao ler O TEMPLO eu percebi da onde vem toda fama e reconhecimento. Lovecraft realmente consegue nos levar a um envolvimento tal que acabamos por experimentar, em certa medida, as sensações de medo e assombro dos personagens. Somos levados a perceber o deslumbramento mítico a que o homem é suscetível quando confrontado com sua pequenez diante de mitos, lendas e, porque não, verdades. Se ler Lovecraft estava em meus planos, a partir de agora serei obrigado a fazê-lo imediatamente.
![]() |
H.P. Lovecraft |
O francês J.H. Rosny Aîné fecha a coletânea com o conto UM OUTRO MUNDO. O autor narra o nascimento de um homem extremamente estranho, a começar pela coloração violeta clara de sua pele. Muito magro e esquelético, o jovem é dono de uma visão capaz de enxergar espectros da luz e da radiação invisíveis ao olho humano comum. Alem disso, possui um raciocínio e agilidade física extremamente elevadas. Nascido em uma família simples em uma cidade da Holanda, o estranho menino logo descobre outros sentidos, dentre eles a capacidade de enxergar uma realidade paralela a nossa e que existe à poucos milímetros de nós. Uma realidade que co-existe à nossa mas que nos é invisível porque "vibra" em uma ressonância diferente da de nossos átomos. É incrível verificar que em 1895 (data da publicação deste conto) o autor imaginou algo que é bem possível que seja verdade, uma vez que a teoria das cordas sugere exatamente estes estados vibracionais diferentes da matéria. Para mim este conto de Aîné soa quase como uma profecia! Com um final muito interessante também!
![]() |
J.H. Rosny Aîné |
A Martin Claret acertou em cheio ao publicar Das Estrelas ao Oceano. Este será um livro ao qual voltarei no futuro para rele-lo em função da atemporalidade de seus contos, ideias e pressupostos. Uma das minhas melhores leituras de 2020 até o momento!