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domingo, 22 de dezembro de 2019

Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos


Paranóico, lúcido, brilhante, imaturo, perspicaz, confuso, visionário, obtuso, profético e, acima de tudo genial, Philip K. Dick já foi chamado pela escritora Úrsula K. LeGuin de Jorge Luis Borges da ficção científica. Mas como alguém pode ter tantos adjetivos contraditórios e ser reconhecido desta forma? Por muitos anos  enxerguei Dick como uma lenda da ficção científica (e ele realmente o é) que avançou para campos polêmicos em seus livros, tais como: Qual a verdadeira natureza da realidade? Vivemos em uma Matrix? Quais atributos fazem de nós seres humanos? Podemos sair da caverna para a verdadeira realidade para a qual fomos criados? Dick fez parte de um tipo de sub gênero da ficção científica conhecido como New Science Fiction. Um subgênero do qual a própria Úrsula K. LeGuin e autores como Robert A. Heinlein fizeram parte, e que usava a ficção científica para abordar questões filosóficas e até espirituais. Lançado no Brasil pela Editora Aleph há algum tempo, o livro Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos do francês Emmanuel Carrère se propôs a mergulhar fundo na psiquê do escritor. Na minha estante há um bom tempo, o livro me convidava a mergulhar no universo que foi a mente de Dick. Finalmente percebi que era a hora de descobrir quem realmente ele foi, além de tentar entender a mística experiência cristã que ele alegava ter passado.


Caso você não tenha reconhecido, Philip K. Dick, falecido em 1982, é a mente por trás de histórias que ajudaram a dar forma à boa parte do imaginário ficcional moderno, abordando questões profundas e filosóficas. Só para citar alguns de suas obras que viraram filmes: Blade Runner - O Caçador de Androides de 1982 (baseado no livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?); Minority Report de 2002 (baseado em um conto de mesmo nome); O Vingador do Futuro de 1990 (baseado no conto We Can Remember It for You Wholesale); a série Sonhos Elétricos de 2018 (baseado no livro de mesmo nome), entre outros. Inquieto e paranoico, Dick construiu ao longo da vida uma densa malha de conjecturas a respeito de si próprio e da realidade ao nosso redor. O livro de Carrère vai fundo nesses delírios e apresenta-os dentro da lógica do autor, segundo a qual existem significados profundos nas pequenas idiossincrasias de nosso dia a dia, como um programa de computador de uma Matrix que eventualmente passa por falhas. Caso você tenha percebido alguma similaridade entre esta forma de pensar e o filme MATRIX, já adianto que o filme dos Irmãs Wachowski com Keanu Reeves no papel principal foi lançado em 1999, enquanto as ideias de Dick surgiram nos anos 60 e 70.


Dick era gêmeo da pequena Jane, irmã que faleceu ainda bebê em função da falta de orientação de sua mãe que não complementava a alimentação da filha. Assombrado por isso a vida inteira, Dick já mostrava sinais de uma imaginação fértil e uma inteligência ímpar ainda criança. Capaz de entreter uma plateia facilmente com seu carisma, ele se divertia em defender pontos de vista e, ao convencer seus interlocutores acerca de alguma questão, mudava de opinião imediatamente, deixando a todos desnorteados. Desde cedo ele enveredou pela dependência de medicamentos, o que se aprofundou com a consolidação de seu status de escritor. Embora sonhasse com um lugar na literatura dramática (gênero adotado e reconhecido como "literatura séria" pelos acadêmicos desde sempre), foi na ficção científica que ele percebeu que conseguiria dar vazão às suas conjecturas. Ainda jovem, um de seus primeiros livros de sucesso O Homem do Castelo Alto, foi sucedido por uma estranha experiência na qual foi surpreendido por um imenso e medonho rosto que o observava do céu. Esta experiência, que se repetiria algumas vezes, o aproximou da fé cristã, para a qual se converteu e foi fiel (dentro de seu modo de pensar) até sua morte.


O livro de Carrère nos permite mergulhar na mente de Dick a partir de seus livros, ou seja, é possível entender a evolução do pensamento do autor a partir do que cada livro aborda. Em O Tempo Desconjuntado de 1959, por exemplo, percebemos que nossa realidade pode ser simplesmente um simulacro universal, temática que evoluiria em seus livros na década de 60. Como parte de seus questionamentos e consequente evolução deles, em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? de 1968, Dick escreve mais que um livro, escreve um tratado de teologia cibernética com direito à profundos questionamentos filosóficos. O sucesso do filme derivado, Blade Runner, apenas confirma a qualidade dos delírios/conjecturas do autor. É muito prazeroso acompanhar o desenvolvimento da mente de Dick, e conseguir enxergar seu reflexo em sua obra. Mas toda esta criatividade viria acompanhada de casamentos desfeitos (em geral pela imaturidade emocional de Dick) e pela paralisante convivência com pessoas complicadas. Durante uma grande fase dos anos 60/início de 70 o autor ficaria em companhia de drogados. O próprio Dick sempre fizera uso, dentre os vários medicamentos, de anfetaminas e metanfetaminas.


Mas foi em 1974 que ele passaria por uma experiência única pela qual Deus havia se comunicado com ele. Dick sempre fugiu de nomear Aquele que lhe contatou como Deus, pois sabia da conotação religiosa e fanática que essa declaração poderia sugerir nas pessoas. Por isso preferia chama-Lo de outros nomes que não vou mencionar aqui para não entregar spoilers da biografia. A experiência é descrita no livro de Carrère e é moldada a partir de sonhos, imagens, visões e línguas que chegavam a Dick. Carrère procurou manter uma postura de respeito diante da experiência, mas não deixa de apresentar as diversas medicações (o que poderia explicar o que aconteceu) que Dick fazia uso. O que, de certa forma, não invalidaria a legitimidade das possíveis teofanias. A partir de destas experiências Dick passaria a entender porque teria escrito o que escreveu em seus livros anteriores, passando a considera-los mensagens a serem entregues ao mundo, mensagens acerca da grande conspiração que estaria por trás do simulacro de realidade no qual vivemos. Não à toa, ele passaria a se sentir perseguido por pessoas que, ao seu julgamento, não queriam que tal verdade fosse conhecida das pessoas.


Toda esta sensação de perseguição de Dick foi validada pela forma como foi desmascarado o então presidente Norte-Americano à época, Richard Nixon. Toda investigação que desembocou em seu processo de Impeachment validava as várias teorias de Dick a respeito de agentes que operam à nossa revelia para nos manter em um estado de ignorância a respeito de quem somos. Em todo esse contexto vale ressaltar que Dick acreditava na divindade de Jesus Cristo e entendia sua vinda à Terra como parte do plano de Deus para nos salvar de uma mentira que sempre nos corrompeu enquanto humanos. E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará, fazia todo sentido dentro da perspectiva de vida de Dick. Ao longo dos anos 60, ele arrebanhou diversos admiradores de vanguarda, que viam em sua visão ímpar, o ressoar da contracultura que se instalava na América. Por exemplo, o ressignificar de dogmas e modelos de pensamentos arcaicos. Mas este mesmo grupo de vanguardistas o abandonou quando ele passou a defender sua visão de mundo em que Deus passava a ter protagonismo em suas ideias. Isto ficou claro em um histórico discurso que Dick fez na França à convite de escritores para discursar em uma Universidade, onde revelou como realidade o fato de vivermos em uma matrix, e citou a Bíblia em vários momentos do discurso.


Obviamente minha interpretação da visão de Dick aqui é muito simplória e superficial, se considerarmos o espaço que tenho e o objetivo do post. Fica fácil de entender, por exemplo, a reação de rejeição de seus fãs diante do acirramento de seus posicionamentos delirantes adotados na segunda metade da década de 70 a respeito do grande plano de Deus. Não posso deixar de dar minha opinião, no entanto, do que acho da mente de Dick, concorde você comigo ou não. Acredito que a visão dele era única dentro de uma teologia pessoal, e que seus sentimentos eram, apesar de confusos, genuínos e honestos na busca de um sentido maior para a vida. Nesse sentido, Philip parecia dar mais valor à sacralidade de sua busca do que à fama derivada dela. Isso o coloca acima de vários autores, infelizmente muito mais interessados em chocar seu público e polemizar assuntos em benefício próprio. Dick realmente queria descobrir o sentido das coisas, sua busca era honesta e verdadeira, e isso já o coloca acima de uma legião de escritores.


Talvez exista mesmo uma mensagem escondida no conjunto de sua obra. Algo que deva ser ainda decodificado e nos coloque dentro de uma percepção nova a respeito de quem somos e de nosso lugar em meio à tudo. Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos é um livro que não exclui os pontos fracos e fragilidades de Dick, e talvez justamente por isso eleve suas ideias.

Recomendo muito o livro de Carrè, e caso alguém se interesse, deixei o link na Amazon que está com ótimos preços. Se você for compra-lo, faça pelo link aqui do Blog, assim você estará ajudando na sua manutenção.


Um grande abraço à todos!

Um comentário:

  1. Prezado amigo Fabiano! Muito contente em ver seu comentário aqui.

    Concordo com você em sua visão acerca dos mistérios da vida e de Deus. Acredito que Philip K. Dick acreditava em algo parecido. No caso dele, no entanto, havia uma angústia de que por alguma razão vivemos em uma realidade que ainda não é a realidade perfeita e correta. Há inclusive um certo amparo Bíblico nisso ao considerarmos o texto de São Paulo em uma de suas epístolas em que ele diz que "por hora enxergamos a realidade como que por um espelho. Mas chegará a hora em que veremos como realmente é...".

    De certa forma Philip acreditava que o plano de Deus seria nos retirar dessa realidade limitadora na qual nós vivemos. Algo que eu concordo com Philip.

    Recomendo essa biografia viu Fabiano.

    Forte abraço para você!! Apareça sempre!

    Marcelo

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